Decisão Monocrática Nº 5013600-91.2022.8.24.0000 do Primeira Câmara de Direito Civil, 14-09-2022

Data14 Setembro 2022
Número do processo5013600-91.2022.8.24.0000
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
Classe processualAgravo de Instrumento
ÓrgãoPrimeira Câmara de Direito Civil
Tipo de documentoDecisão Monocrática
Agravo de Instrumento Nº 5013600-91.2022.8.24.0000/SC

AGRAVANTE: ASSOCIACAO FRADA - FRENTE DE ACAO PELOS DIREITOS DOS ANIMAIS ADVOGADO: JAMES JOSE DA SILVA (OAB SC012314) ADVOGADO: JOAO VICTOR LINHARES DA SILVA (OAB SC061795) AGRAVADO: ALESSANDRA NETSCHAY BARCELLOS AGRAVADO: CESAR EDUARDO DE LIMA MP: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA

DESPACHO/DECISÃO

I - Cuida-se de "ação de indenização por danos morais e materiais" proposta na Comarca de Joinville, tendo na parte ativa nominados 24 cachorros e 2 tartarugas, representados pela Associação Frada, e no polo passivo Cézar Eduardo de Lima e Alessandra Netschay Barcelo (autos n. 5002886-55.2022.8.24.0038).

O agravo de instrumento, interposto pela parte autora, investe contra a decisão na qual o Magistrado a quo determinou a emenda da inicial, com a retificação do polo ativo - retirada dos animais e a inclusão da Associação Frada como parte requerente -, nos seguintes termos (EVENTO 4):

O Código Civil qualifica os animais como semoventes ("bens suscetíveis de movimento próprio"), enquadrando-os na categoria de bens móveis (art. 82, CC) que, em razão disso, podem ser objeto de contrato de compra e venda (art. 445, § 2º, CC) e, inclusive, de penhor (arts. 1.442, V, 1.444-ss, CC). Assim, o ser humano detém sobre os animais uma relação jurídica de propriedade, posse ou detenção (arts. 936 e 1.397, dentre outros, CC).

Nesse sentido, sem ignorar as relações de afeto entre seres humanos e animais e que a saúde dos últimos é tutelada por nosso Direito, foi o voto proferido pelo desembargador J. L. Mônaco da Silva, da 5ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento da Apelação Cível n. 1000398-81.2015.8.26.0008, ocorrido em 20-4-2016:

No Código Civil de 2002, os animais são tratados como objetos destinados a circular riquezas (art. 445, § 2º), garantir dívidas (art. 1.444) ou estabelecer responsabilidade civil (art. 936).

Com isso, é possível afirmar que a relação afetiva existente entre seres humanos e animais não foi regulada pelo referido diploma.

A propósito, tamanha é a notoriedade do referido vínculo atualmente que, com base em pesquisa recente do IBGE, é possível afirmar que há mais cães de estimação do que crianças em lares brasileiros (http://oglobo.globo.com/sociedade/saude/brasil-tem-mais-cachorros-de-estimacao-do-que-criancas-diz-pesquisa-doibge-16325739).

Diante disso, pode-se dizer que há uma lacuna legislativa, pois a lei não prevê como resolver conflitos entre pessoas em relação a um animal adquirido com a função de proporcionar afeto, não riqueza patrimonial.

Nesses casos, deve o Juiz decidir "de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito", nos termos do art. 4º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro.

Considerando que na disputa por um animal de estimação entre duas pessoas após o término de um casamento e de uma união estável há uma semelhança com o conflito de guarda e visitas de uma criança ou de um adolescente, mostra-se possível a aplicação analógica dos arts. 1.583 a 1.590 do Código Civil, ressaltando-se que a guarda e as visitas devem ser estabelecidas no interesse das partes, não do animal, pois o afeto tutelado é o das pessoas.

Todavia, isso não significa que a saúde do bicho de estimação não é levada em consideração, visto que o art. 32 da Lei n. 9.605/1998 pune com pena privativa de liberdade e multa quem "praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais (...) domésticos ou domesticados".

De fato, a legislação brasileira, em comparação com a de outros países, ainda está muito atrasada no que tange ao estatuto jurídico dos animais, como bem destacou Rafael Speck de Souza:

Tradicionalmente, o Direito sempre tratou os animais, em regra, sob a ótica privatista -- o que se pode perceber das expressões res, semoventes, propriedade, recurso ou bens (LEVAI, 2005, p. 583). Tal visão ainda hegemônica inspirou-se na doutrina romana clássica (LOURENÇO, 2008, p. 90).

A orientação ética centrada na pessoa humana (o "personalismo ético") consiste na principal diretriz do Direito Civil desde as codificações do século XIX. Exemplos dessa assertiva estão na Consolidação das Leis Civis (que continha uma Parte Geral) e nos Códigos Civis de 1916 e de 2002. Ou seja, como esclarece Azevedo: "todo homem, toda mulher, toda criança, todo idoso, qualquer um, qualquer que seja a idade, a etnia, a nacionalidade, a cor da pele, a religião, o patrimônio, o status social ou o grau de cultura (AZEVEDO, 2008, p. 115).

De outro lado (o dos animais), previa o Código Civil de 1916 que "são móveis os bens suscetíveis de movimento próprio" (artigo 47, parte). O artigo 82, primeira parte, do Código Civil vigente possui redação idêntica. Tais disposições referem-se aos semoventes. O Código Civil de 1916 possuía, ainda, outro dispositivo que trata os animais como objeto; era o artigo 593, localizado na seção relativa à ocupação de coisas móveis, nas quais incluía os animais bravios, mansos e domesticados, os enxames de abelhas e os animais arrojados às praias do mar. O Código Civil atual, por sua vez, ao tratar da ocupação, prevê apenas que "quem se assenhorar de coisa sem dono para logo lhe adquire a propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei" (artigo 1.263).

Como se vê, a legislação ordinária ainda está muito atrasada no tocante ao estatuto jurídico dos animais, sobretudo em comparação às legislações estrangeiras [...]. (SOUZA, Rafael Speck de. Direito Animal à luz do pensamento sistêmico-complexo: um enfoque integrador ecologizado para se pensar a proteção dos animais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 94-95).

O estatuto jurídico dos animais tem sido modificado em diversos países que adotam o sistema romano-germânico. Em muitos deles, tem-se sustentado que os animais não são coisas. Nesse sentido, Rafael Speck de Souza, em outro estudo...

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