Democracia e lutas antirracistas/Democracy and anti-racist struggles.

AutorEurico, Marcia Campos
CargoARTIGO

Introdução

O contexto histórico em que se insere a produção deste texto está profundamente marcado pela desigualdade étnico-racial enquanto uma determinação posta pelo modo de produção capitalista, agravada de maneira irreversÃÂvel pela pandemia de Covid-19 (1), de proporções mundiais e com custos elevados para os paÃÂses do sul global. O que a pandemia explicita sobre relações étnico-raciais no Brasil é o quanto a base da formação social brasileira é racialmente fundada e, portanto, é pela via da condição étnicoracial que pessoas negras, indÃÂgenas e brancas são categorizadas e hierarquicamente tratadas.

Em relação aos povos indÃÂgenas, torna-se importante assinalar o quanto a violência é uma marca da colonização e da colonialidade do poder, conforme Quijano (2005). O Atlas da Violência 2021 introduziu duas novas seções de análises sobre pessoas com deficiências e indÃÂgenas. Consideramos importante explicitar, ainda que este não seja o debate central deste artigo, a base da violência contra os povos indÃÂgenas:

Sabe-se que a violência é uma herança histórica na interação entre o Estado--e sua sociedade--e os povos indÃÂgenas. Como afirmou Kerexu Yxapyry, liderança indÃÂgena Guarani Mbya da Terra IndÃÂgena Morro dos Cavalos (SC) (YXAPYRY, 2017), a consciência sobre a violência contra os povos indÃÂgenas 'é o legado que a gente traz nas veias'. Independente da concepção de violência que se tome--seja a violência etnocida, que nega a diferença (CLASTRES, 2004, p. 61), ou a violência fÃÂsica--não há como negá-la, da colonização àcolonialidade [...]. (CERQUEIRA et al., 2021, p. 82). A divisão racial do mundo assume particularidades na realidade brasileira, com sua frágil democracia e, aqui, optamos por apresentar o debate tendo como recorte temporal o século XX, as teorias pseudocientÃÂficas, a polÃÂtica de branqueamento (2) e o mito da sociedade racialmente democrática como pilares que fortalecem o racismo (3) antinegro. Em relação àpopulação negra destacamos a análise do Atlas da Violência 2021 sobre violência:

Em 2019, os negros (soma dos pretos e pardos da classificação do IBGE) representaram 77% das vÃÂtimas de homicÃÂdios, com uma taxa de homicÃÂdios por 100 mil habitantes de 29,2. Comparativamente, entre os não negros (soma dos amarelos, brancos e indÃÂgenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil, o que significa que a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. Em outras palavras, no último ano, a taxa de violência letal contra pessoas negras foi 162% maior que entre não negras. Da mesma forma, as mulheres negras representaram 66,0% do total de mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 4,1, em comparação a taxa de 2,5 para mulheres não negras. (CERQUEIRA et al., 2021, p. 49). O que os dados sobre violência contra povos indÃÂgenas, quilombolas e população negra explicitam é o quanto a sociabilidade burguesa é calcada na dominação, exploração e opressão dos grupos que foram classificados racialmente como os "outros" e hierarquizados, com intuito de rebaixar suas humanidades e justificar como lÃÂcita toda e qualquer ação arbitrária que viola a condição humana.

[...] o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder 'fazer história'. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos. [...] A primeira coisa a fazer em qualquer concepção histórica é, portanto, observar esse fato fundamental em toda a sua significação e em todo o seu alcance e a ele fazer justiça. (MARX; ENGELS, 2007, p. 32-33). No processo de avanço civilizatório, o direito dos grupos humanos àvalorização da sua história, território, memória e cultura deve ser um imperativo ético. Na prática o que se verifica é o quanto o acesso àdemocracia é restrito quando as instituições, com suas leis e normas, reproduzem o racismo institucional. Essa reprodução se dá com práticas conservadoras e violentas que reiteradamente invisibilizam o modo de ser e de viver dos povos originários, da população negra brasileira e de sua herança africana, das comunidades quilombolas, das comunidades de terreiro, entre outros grupos que pautam suas vivências por valores e culturas diferentes do padrão branco europeu.

Não há democracia plena quando os direitos e garantias individuais são negados ou rechaçados em nome de um projeto societário, que se organiza no paÃÂs enraizado na polÃÂtica do branqueamento da cor da pele, dos comportamentos, da vida em geral. Portanto, de acordo com o professor Oscar Vilhena Vieira, em entrevista para o Relatório Democracia Inacabada:

As instituições públicas tenderão a reforçar os mecanismos de desigualdade e a democracia irá se degenerando, até entrar em crise. Assim, não seria incorreto dizer que, sem um padrão mÃÂnimo de igualdade, a democracia sempre estará incompleta, pois não será capaz de refletir o interesse de todos os atores da sociedade de maneira equânime. (OXFAM, 2021, p. 16). Nesse sentido, a presente análise busca apreender de que modo as determinações sócio-históricas incidem sobre os sujeitos, na intrÃÂnseca relação entre universalidade e particularidade. Além disso, é crucial investigar, a partir da categoria totalidade, a funcionalidade das visões que reduzem a luta de classes ao determinismo econômico. Ao recuperar no movimento do real, as contradições postas pela sociabilidade burguesa e como estas incidem de maneira prejudicial sobre a população negra, torna-se evidente que o avanço da democracia pressupõe medidas ampliadas de combate...

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