A desconsideração da personalidade jurídica de acordo com a Lei n. 13.467 /2017 - Reforma trabalhista

AutorAndré Gonçalves Zipperer
Páginas353-362

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Ver Nota1

1. Introdução

A Lei n. 13.467/2017, chamada de reforma trabalhista, traz no seu bojo, dentre outras diversas novidades, a positivação no Direito Processual do Trabalho do instituto da desconsideração da personalidade jurídica que até então só era previsto em outras legislações, fazendo com que o aplicador do Direito do Trabalho tivesse que se socorrer da analogia para poder dar efetividade à execução.

O legislador da reforma deixou de lado a rica construção jurisprudencial trabalhista sobre o tema, preferindo trazer a totalidade do texto do Processo Civil para dentro da CLT sem se preocupar também com o tratamento de direito material.

Este artigo se propõe a analisar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica nos moldes como foi positivada na Lei n. 13.467/2017 e suas consequências práticas no Direito Processual do Trabalho.

A primeira parte trata da Disregard Doctrine no Brasil e sua positivação no Direito Material a partir do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, do art. 50 do Código Civil e demais legislações sobre o tema, defendendo a aproximação do sistema consumerista à realidade trabalhista.

A segunda parte aponta a positivação no Direito Processual do Trabalho por meio do Novo Código Processual Civil de 2.015 e como este foi recebido pela doutrina Justrabalhista para aplicação subsidiária.

Por fim, o artigo apresenta uma crítica à escolha legislativa do legislador da reforma trabalhista de 2017 analisando as consequências práticas do novo texto da CLT.

2. A Disregard Doctrine no Brasil e sua positivação no Direito Material

O art. 20 do Código Civil de 1.916 já previa a existência distinta entre a pessoa jurídica e seus membros, o que, segundo alguns autores, era empecilho para a aplicação da disregard doctrine.2

O jurista paranaense Requião, entretanto, sofrendo nítida influência dos escritos de Serick, de forma pioneira tratou do assunto no Brasil em artigo publicado em 19693, inclusive traduzindo a expressão “disregard of legal entity” para “desconsideração da personalidade jurídica”.

Nesta obra coloca a fraude e o abuso de direito como elementos essenciais a autorizar o juiz a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica em relação às pessoas que a lei contrapõe. Como consequência poder-se-ia atingir o patrimônio dos sócios, quando do uso indevido da sociedade.

Para Requião,4 ainda, a teoria não visava à anulação da personalidade jurídica, mas tão somente a declaração de ineficácia da mesma para determinado efeito, em razão do desvio do uso legítimo da mesma para prejudicar credores ou violar a lei em benefício de seus membros.

O surgimento da teoria em seus estudos deu-se em grande monta por meio da constatação de que a teoria da personalidade jurídica aplicada às sociedades comerciais, não deixa de criar sérios problemas, razão pela qual pressente a sua decadência.5

Os problemas apontados pelo mestre paranaense foram as fraudes promovidas por meio da personalização de sociedades anônimas, seja em problemas de âmbito

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privado, seja em relações de direito público. Em análise da doutrina da Disregard of Legal entity, constatou seu nascimento no direito anglo-saxão, espraiando-se para o direito germânico.

Atualmente, como regra geral, a desconsideração da personalidade jurídica está positivada no art. 50 do Código Civil, que expressamente estabelece “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finali-dade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”

O legislador de 2002 acolheu a denominada “teoria maior” da desconsideração, também conhecida como teoria objetiva, sustentada no Brasil por Rubens Requião com base nos estudos de Rolf Serick, que condiciona a desconsideração com a ocorrência de critérios subjetivos como a fraude ou abuso de direito.

O tema exposto por Rubens Requião no famoso artigo de 1.969 mereceu atenção da Comissão Revisora do Código Civil, presidida pelo professor Miguel Reale, inspirando o art. 49 do Anteprojeto.

O dispositivo em questão pretendia, à época, “radical medida de dissolução da pessoa jurídica”, quando for ela desviada dos fins que determinam a sua constituição6, enquanto a doutrina exposta objetivava somente que o juiz desconsiderasse episodicamente a personalidade jurídica, para evitar a fraude ou abuso do sócio que dela se vale como escudo.7

Rubens Requião na época então, sugere alteração no art. 49, sendo em razão desta sugestão o mesmo alterado (segundo o autor, “não ainda de forma satisfatória”) passando a constar o texto que posteriormente iria ser promulgado já como art. 50 do mesmo código.8

Mesmo antes do advento do art. 50 do Código Civil de 2002, a ideia da desconsideração da personalidade jurídica já havia sido concebida pela ordem jurídica positiva por meio da jurisprudência e regras específicas.

De fato, anteriormente a esta norma, já havia a possibilidade de se desconsiderar a personalidade por previsão do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), assim como em razão da Lei n. 8.884 de 11 de junho de 1994, que estabelece sansões para disciplinar a livre concorrência (art. 18). Também admite a desconsideração a Lei n. 9.695 de 12 de fevereiro de 1998, regulamentada pelo Decreto n. 3.179 de 21 de setembro de 1999, que dispõe sobre a tutela do meio ambiente, em seu art. 4º.

Afora esses preceitos específicos, a teoria da disregard já era aplicada pelos juízes e tribunais, em situações específicas analisadas com prudência exigida em cada caso e quando a situação fática permitia vislumbrar a fraude.

Ainda em outras situações era possível legitimar a desconsideração da pessoa jurídica a partir dos chamados “princípios gerais do direito”, aos quais faz menção o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.910

Alguns autores, principalmente aqueles ligados ao direito civil, veem no art. 50 do Código Civil, entretanto, a positivação da “velha figura da desconsideração da personalidade jurídica”.11

Vieira Silva12, na mesma linha, em trabalho escrito mesmo antes da sanção do projeto de Lei que deu origem ao Código Civil de 2002, afirmou que o projeto (que na época tinha a mesma redação com que foi sancionado) “reflete com fidelidade e precisão o espírito da teoria da desconsideração da personalidade jurídica”, arrematando em seguida “enfim, passando a vigorar o art. 50, do Projeto, com a mesma redação acima, estará definitivamente introduzida no ordenamento jurídico brasileiro a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, exatamente da forma como delineada por seus estudiosos”.

No mesmo sentido Couto Silva13, afirmou que o preceito em questão tinha o mérito de diferenciar despersonificação e desconsideração, mas “restringe a possibilidade de aplicação da teoria da desconsideração às hipóteses de abuso e de confusão patrimonial, sem acrescentar a fraude no seu sentido mais amplo”.

Atualmente, os tribunais britânicos admitem, da mesma forma que o texto do art. 50 do Código Civil, o

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levantamento do véu da pessoa jurídica, quando a empresa é vista como mero boneco (puppet) de outra pessoa, ou ainda um clone de seu controlador, atuando como seu verdadeiro alter ego.14

A partir da edição deste dispositivo do Código Civil, em 2002 (com vigência a partir de 10 de janeiro de 2003), o debate sobre a aplicação da desconsideração da personalidade nas lides trabalhistas, que antes já era fervoroso, agora ainda mais é objeto de diferentes interpretações.

Requião, um dos primeiros juristas a tratar sobre a então teoria da desconsideração da personalidade jurídica em clássico artigo escrito em 196915, admite que o art. 2º, § 2º, da CLT de 1943, é o verdadeiro introdutor dessa teoria de forma positivada no país.

A partir do estudo de Rubens Requião, e em apego ao megaprincípio protetivo do Direito do Trabalho, a doutrina juslaboralista passou a adotar a posição de que o empregador, ao assumir os riscos da atividade econômica, em momento algum poderá transferir ao empregado os even-tuais prejuízos de sua atividade empresarial. Nada obstante, a responsabilização do sócio, quando da existência de empresa devidamente constituída, decorre de lei.

Até a edição do Código de Defesa do Consumidor (CDC), essa era a posição dominante na doutrina, ressalvando que muitos doutrinadores apontaram no art. 28, do CDC16, e seu § 5º17, o verdadeiro marco legislativo inicial da teoria da desconsideração no ordenamento jurídico pátrio.

De fato, somente a partir do Código de Defesa do Consumidor é que o fenômeno da desconsideração da personalidade jurídica tomou corpo e passou a ser o ponto de referência normativo, aplicado supletivamente no processo do trabalho por força dos arts. e 769, ambos da CLT.

A compatibilidade do dispositivo do CDC com o Processo do Trabalho decorre da aplicação da chamada “teoria menor” da desconsideração, segundo a qual não se preocupa em distinguir a utilização fraudulenta da regular do instituto, sendo indiferente ter havido ou não abuso de forma.18

O caput do art. 28, do CDC, adotou a “teoria maior” ou “objetiva” da desconsideração, enquanto o § 5º do mesmo artigo realmente adotou a “teoria menor” ou “subjetiva”.

A teoria menor também foi recepcionada por outras...

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