Dialetica e revolucao: confrontando Kelsen e Gadamer quanto a interpretacao juridica/Dialectic and revolution: confronting Kelsen and Gadamer on legal interpretation.

AutorLindahl, Hans

Versão original:

LINDAHL, Hans. Dialectic and Revolution: Confronting Kelsen and Gadamer on legal interpretation. Cardozo Law Review, v. 24, n. 2, p. 769-798, 2002-2003. DOI?

Introdução (1)

Qualquer um que folheie a Teoria Pura do Direito esperando encontrar uma análise filosófica aprofundada acerca da interpretação jurídica está fadado a se desapontar, ao menos em princípio. A interpretação jurídica ocupa um papel relativamente modesto na estrutura da Teoria Pura, e o enfoque da análise kelseniana é extremamente estreito. A perspectiva avançada por Kelsen é em grande medida determinada pela rejeição completa da posição que compreende os métodos da interpretação jurídica como o caminho para uma "única resposta correta". Ainda que perspicaz, a abordagem de Kelsen não deixa de ser restritiva por demasiado. Sua estreiteza--e mesmo seu reducionismo--é chocante dado o papel de destaque ocupado pela interpretação nas mais variadas linhas de investigação filosófica, contemporâneas ao desenvolvimento da Teoria Pura. A análise em Edmund Husserl da estrutura da intencionalidade, a discussão em Heidegger da compreensão como um elemento fundamental da relação humana com o mundo, e a elaboração por parte de Hans-Georg Gadamer da hermenêutica filosófica podem ser vistas, com a abstração considerável de suas diferenças, como tentativas de clarificar a estrutural comum e as condições de possibilidade da interpretação.

A obra de Gadamer tem particular interesse, visto que nela há uma discussão específica quanto à interpretação jurídica, assumindo então um papel paradigmático de exposição do esforço hermenêutico como um todo. Verdade e Método, sua obra magna, teve uma influência profunda nas discussões da Teoria do Direito acerca do conceito e tarefa da interpretação jurídica, tanto na Europa Continental quanto na tradição anglo-saxã. Um exemplo conhecido é o de Ronald Dworkin, quem reconhece sua dívida para com Gadamer nos capítulos iniciais de Império do Direito. Em suma, enquanto o que se poderia denominar vagamente como um giro hermenêutico na filosofia moderna teve um impacto considerável na discussão teórico-jurídica acerca da interpretação jurídica, Kelsen pareceria ter permanecido teimosamente impermeável a esse tipo de pensamento.

Em um primeiro apanhado das questões que interessavam Kelsen, é tentador concluir que a Teoria Pura tem pouco ou nada a oferecer para uma elaboração filosófica do conceito de interpretação jurídica. Essa conclusão, contudo, pode ser prematura. Eu argumentarei que a contribuição fundamental da Teoria Pura para uma teoria da interpretação jurídica se encontra em outro lugar, na teoria da norma fundamental. Eu proponho, portanto, uma investigação a respeito da estrutura comum e das condições de possibilidade da interpretação jurídica através do confronto da Teoria Pura de Kelsen com a hermenêutica filosófica de Gadamer.

Essa confrontação se desenvolve em dois momentos. O primeiro propõe uma leitura crítica de Kelsen através de Gadamer. O conceito chave desse momento é a dialética, ou, nos termos postos por Gadamer, o círculo hermenêutico. De fato, a radicalização da perspectiva kelseniana da norma jurídica como um "esquema de interpretação" revela a dialética operante no Direito: a interpretação jurídica da realidade também muda, em maior ou menor medida, o princípio da interpretação isto é, a norma jurídica. O segundo momento inverte o primeiro, propondo então uma leitura crítica de Gadamer através de Kelsen. Aqui, o conceito chave é revolução. A análise kelseniana da gênese de uma ordem jurídica, através do seu enquadramento por sua famosa teoria da norma fundamental efetivamente expõe os limites da interpretação jurídica no sentido forte do termo "limite": toda ordem de direito positivo é radicalmente contingente, porque a interpretação jurídica sempre acontece ao modo de uma ruptura normativa que não pode ser "fechada" interpretativamente a partir da e pela ordem jurídica ela mesma. A crítica de Kelsen, eu proponho, revela um resíduo de positivismo a governar a perspectiva gadameriana da interpretação jurídica, em que pese sua crítica expressa e contínua dessa abordagem do Direito.

  1. Dialética

    Uma ambiguidade latente caracteriza a teoria kelseniana da interpretação jurídica. A ambiguidade advém do fato que a Teoria Pura contém não uma, mas duas abordagens diferentes quanto a interpretação jurídica. Essa ambiguidade é latente, por sua vez, porque enquanto Kelsen explora de maneira elaborada uma delas, a outra permanece pouco desenvolvida e marginal. A primeira se funda na ideia de que a norma jurídica é uma "moldura" de possibilidade, isto é, um escopo maior ou menor de significados normativos, esperando para serem descobertos pelo ato interpretativo. A segunda destaca a norma jurídica como um "esquema de interpretação". Após discutir brevemente a abordagem privilegiada por Kelsen, eu procurarei mostrar como a noção de um "esquema de interpretação" permite que a Teoria Pura se integre ao "giro hermenêutico" da filosofia moderna.

    1.1. A norma jurídica como uma moldura de significados

    A interpretação é, como Kelsen a reconhece, um elemento onipresente do Direito. Em todos os casos aqueles em que uma norma deve ser aplicada, a interpretação é necessária, incluindo normas constitucionais, leis, regulações administrativas, decisões judiciais e contratos. Entretanto, o processo de aplicação normativa não esgota de modo algum o escopo da interpretação jurídica: com vistas a seguir ou cumprir as normas jurídicas, os indivíduos precisam interpretá-las. Mais ainda, o âmbito de operação da interpretação jurídica não está limitado a uma disposição prática quanto ao Direito, tal qual naqueles casos em que se o aplica ou se o cumpre; a ciência jurídica também precisa interpretar o Direito no processo de sua descrição, isto é, quando se empreende uma disposição puramente teorética quanto ao Direito. (2)

    O que é afinal a interpretação jurídica? A resposta kelseniana está intimamente entrelaçada com a compreensão das normas jurídicas como "molduras" que contêm um espectro de aplicações possíveis. Nas suas palavras, "se 'interpretação' é entendida como a descoberta do significado de uma norma a ser aplicada, seu resultado só pode ser a descoberta de uma moldura que a norma a ser interpretada representa e, dentro dessa moldura, a cognição das várias possibilidades de aplicação." (3) De maneira sucinta, compreender uma norma jurídica significa clarifica-la, e clarifica-la implica destacar e fixar--festsellen--os conjuntos de significado que definem uma norma jurídica como uma "moldura" de possíveis aplicações. Isso é aquilo que, substancialmente, Kelsen nos escreve acerca do conceito da interpretação jurídica.

    A teoria da moldura prepara o caminho para os dois posicionamentos polêmicos de Kelsen frente às teorias tradicionais da interpretação jurídica. O primeiro diz respeito à segurança jurídica. Na sua perspectiva, os assim chamados métodos de interpretação jurídica encobrem o fato de que "não existe nenhum critério que possa fundar a preferência de uma das possibilidades oferecidas pela moldura da norma em detrimento das demais." (4) Assim, a questão concernindo a interpretação "correta" de uma norma jurídica é uma problema político-jurídico, mas não teórico-jurídico. Consequentemente, a segurança jurídica, isto é, a ideia de que a interpretação favorecida por uma autoridade jurídica--e apenas essa interpretação--deriva inexoravelmente da norma aplicável é uma ilusão que serve apenas para mascarar os poderes discricionários exercidos pelas autoridades.

    O segundo concerne o problema das lacunas no Direito. De um ponto de vista estritamente lógico, não haveria lacunas no Direito, dado que se nenhuma norma jurídica é aplicável a um caso trazido perante o Direito, então a autoridade jurídica correspondente pode simplesmente rejeitar a pretensão como infundada. Contudo, o problema das lacunas se refere àqueles casos em que a aplicação do significado da norma leva a resultados que são vistos como injustos ou inconsequentes. Nesses casos, os métodos de interpretação são invocados com vistas a remover a discrepância. De fato e contudo, eles são convocados para "eliminar a norma a ser interpretada, com vistas a substituí-la com a norma desejada pela autoridade a aplica-la." (5) Kelsen não poupa nas palavras acerca desse procedimento, que para ele significaria o mesmo que a usurpação das funções da autoridade jurídica.

    Ainda que essa sinopse pudesse ser refinada, ela parece suficiente para apreender a direção principal da teoria kelseniana da interpretação jurídica. (6) Agora, eu proponho um enfoque no seu pressuposto-chave, de modo a abrir caminho para uma segunda abordagem da interpretação: uma abordagem que a Teoria Pura sugere, mas, em última instância, não desenvolve.

    A proposta kelseniana de ver a norma jurídica como uma "moldura" de significados tem sua plausibilidade, dado ser inquestionável que, embora polissêmicas, as normas jurídicas não o são de maneira infinita. Entretanto, a referência a uma moldura diz mais que isso: ela diz que a tarefa da ciência do Direito é "baseada na análise, [revelar] todas as significações possíveis, mesmo aquelas que são politicamente indesejáveis e que, porventura, não foram de forma alguma pretendidas pelo legislador ou pelas partes que celebraram o tratado, mas que estão compreendidas na fórmula verbal por eles escolhida." (7) Como "moldura", a norma jurídica é um corpo fechado e imutável de significados, esperando para ser descoberto e ordenado pela ciência do Direito.

    Justamente por essa razão, a crítica kelseniana se refere à possibilidade, mas não ao conceito, da segurança jurídica. A teoria da moldura implica que é possível haver certeza quanto o espectro de significados compreendidos por uma norma jurídica, no sentido de uma enumeração exaustiva e concludente acerca das aplicações possíveis de uma norma. Longe de romper com a ideia tradicional de...

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