Criminalização do Assédio Moral Trabalhista e Garantismo Penal: Reflexões Centradas na Possibilidade e Necessidade de Expansão da Tutela Labor-Penal em Tempos de Minimalismo Punitivo

AutorNey Maranhão
Páginas84-9

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1. Introito: breve ode à complexidade imanente à realidade e ao conhecimento humanos

Sempre nos preocupou o ofertar de respostas simples diante de questões complexas - como de regra sucede no que toca a discussões que envolvam temáticas afetas ao homem. Bem já se disse, acertadamente, que uma resposta simples pode ser elegantemente persuasiva, todavia profundamente equivocada. a realidade, a vida, enfim, é e sempre será complexa.

Veja-se que o mesmo fato, como um acidente de trânsito, pode reunir causas múltiplas (má sinalização, imprudência, qualidade climática, falta de manutenção de peças, fadiga decorrente de excesso de jornada, desequilíbrios psicossomáticos etc.) e congregar aspectos jurídicos os mais variados (infração de trânsito por excesso de velocidade, responsabilidade civil, dolosidade ou culposidade de violações penais, gozo de benefícios previdenciários, suspensão de pacto laboral etc.).

Daí a necessidade, cada vez mais pungente, de que aquele que pensa a realidade humana não se canse de primar por um foco, por assim dizer, "não reducionista", dispondo-se, pois, a singrar por mares científicos outros, seja por envolver matérias diferenciadas, embora ligadas ao mesmo ramo do conhecimento (como o jurídico), seja por suscitar reflexões que até invadam outras áreas da apreensão humana, que não a jurídica, no intuito de emprestar à sua visão o máximo de aderência possível para com a realidade que o circunda. Não sem razão, é cada vez mais frequente o número de juslaboralistas que, para se especializar na seara trabalhista, saem do "lugar-comum" e, expungindo a "comodidade intelectual", ousam mergulhar nos meandros do Direito Civil, do Direito Constitu-

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cional, do Direito Ambiental, do Direito Internacional Público, do Direito Previdenciário, do Direito Comercial e, por que não, também do Direito Penal...1

Além disso, muitos profissionais jurídicos, hoje, aventuram-se na Sociologia, na Filosofia, na Psicologia, na Psiquiatria, na medicina, na Engenharia, dentre muitas outras áreas do conhecimento humano que, embora alheias à específica instância jurídica, detêm enorme influência nas relações sociolaborais - basta pensar, para citar apenas um caso, na riqueza interdisciplinar resultante de um criterioso estudo holístico da temática do meio ambiente do trabalho.2

Desse modo, não deve causar espécie o fato de especialistas do ramo trabalhista desejarem lançar-se na audaz empreitada de estender seus limites intelectivos e, com prudência e ciência, aproximarem-se de outros rincões com vistas a melhor compreender, criticar e aprimorar as discussões que são ínsitas ao seu precípuo objeto de estudo: o mundo do trabalho. mais que um simples alargamento individual de conhecimento, isso também implica, a nosso sentir, um proveitoso "aproximar-se da realidade" - aspecto objetivo esse que, a todo momento, deveria ser levado em conta pelo estudioso comprometido com a seriedade de sua pesquisa.3

Logo, de saída, registramos nossa alegria em participar de uma obra coletiva tão interessante, que, no particular, propõe refletir a vida exatamente como ela é: na beleza da sua complexidade, à luz de um saber que necessariamente impõe-se seja interdisciplinar.4 no caso desta coletânea, cruzando, em alguma medida, as áreas do Direito do Trabalho e do Direito Penal.

2. O fenômeno "assédio moral laboral" e sua complexa morfologia: algumas modalidades de práticas assediantes

Quanto à figura do assédio moral praticado no ambiente de trabalho, cuida-se, infelizmente, de fenômeno rotineiro, tanto que, nas salas de audiência, a análise de processos envolvendo alguma denúncia de assédio, ainda que velado, é praticamente diária. Trata-se, como é cediço, de expediente extremamente deletério à dignidade humana, cuja conceituação, em boa síntese, pode ser tomada como "a prática de uma conduta degradante, atentatória a direitos fundamentais, a qual seja reiterada a sistematizada".5

Não se olvide, porém, que o ordenamento jurídico brasileiro faz clara exigência de que tanto a propriedade quanto o contrato atinjam sua função social.6 noutras palavras: o empregador, seja na dimensão jurídico-patrimonial de seus bens, seja na dimensão jurídico-contratual de seus trabalhadores, precisa se realizar, como pessoa jurídica, no cotidiano, dentro das asas da "livre iniciativa", todavia vinculado ao desiderato maior de, em última instância, sempre prestar homenagem à dignidade hu-

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mana e aos demais princípios substanciais incrustrados no bojo constitucional. No fundo mesmo, a verdade é que a iniciativa empresarial nada tem de "livre", à vista da sua necessária adstrição à função social que a Constituição se lhe impõe. Não sem razão, nossa Constituição Federal, ao elencar os fundamentos da República Federativa do Brasil, também aponta como tal "os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa" (Constituição Federal/1988, artigo 1º, IV). Perceba-se, por oportuno, que, pela clara dicção do texto constitucional, nem o "trabalho" e nem a "livre iniciativa", em si mesmos considerados, constituem fundamento da República Federativa do Brasil, mas, isto sim, a expressão social desses fenômenos, a sua incontornável conformação axiológica aos ditames constitucionais, ou seja, se e somente se densificados na realidade prática enquanto elementos que se harmonizem para a construção de uma sociedade cada vez mais livre, justa e solidária (Cf, art. 3º, i), com a promoção o bem de todos (Cf, art. 3º, iv).

Logo, quando uma empresa permite, tácita ou expressamente, que um sórdido ambiente de assédio se instale em suas dependências, a estruturação jurídica daí advinda deixa de cumprir sua finalidade social, desborda das balizas ético-sociais que lhe foram constitucionalmente impostas, seja por ofensa direta à dignidade de um ou de alguns trabalhadores específicos - vítimas do assédio -, seja por ofensa indireta à própria sociedade - que, ali, naquele "microcosmos" fático-social, vê frustrado o intento constitucional de garantir o bem de todos.

Feitas essas considerações de ordem mais geral, há de se pontuar, quanto ao tema em si, que o assédio moral incorpora figura reconhecidamente multidimensional. Cuida-se de fenômeno altamente complexo e que se realiza de diferentes maneiras.

Por primeiro, existe o chamado assédio horizontal, praticado entre pessoas que estão no mesmo nível hierárquico. Embora possa parecer estranho, mas o fato é que até entre empregados é possível ocorrer assédio, sendo que se o empregador anui, ainda que tacitamente, com esse ambiente hostil, surge como responsável direto pelos danos ocorridos à vítima, já que sobre ele se impõe o dever constitucional de manter o ambiente de trabalho sempre sadio, inclusive no sentido emocional da coisa (CF, art. 7º, XXII).

Há, ainda, o assédio dito por vertical, que ocorre entre pessoas envolvidas com algum grau de subordinação. Esse tipo de assédio pode ser vertical descendente, o mais conhecido e comum, a se revelar como o assédio praticado, por exemplo, do chefe para com um ou alguns de seus subordinados, o que é típico da esfera das empresas privadas. E pode ser, também, vertical ascendente, que é o assédio dos subordinados para com seu chefe, figura mais encontrada no âmbito do serviço público.

Visualiza-se, ademais, a existência do assédio cunhado de misto. Nesse caso, alguém fica no centro e o assédio vem tanto dos colegas quanto do chefe, paralelamente. Este é o mais doentio, mais perverso e mais grotesco tipo de assédio que um ser humano pode sofrer.

De semelhante efeito lesivo é o chamado assédio estratégico ou organizacional, identificado como "uma estratégia da empresa para reduzir o número de pessoal ou, buscando conter custos, substituir o quadro por pessoas mais jovens e, consequentemente, pagar salários mais baixos. A empresa organiza sua estratégia de modo tal a levar o empregado a demitir-se".7

Delineadas, em linhas gerais, as principais modalidades de assédio moral praticadas no contexto trabalhista, cumpre finalmente adentrar na temática nodal da presente reflexão.

3. Criminalização do assédio moral trabalhista e garantismo penal: reflexões sobre a expansão da tutela labor-penal em tempos de minimalismo punitivo

A impressionante frequência com que se denuncia, judicial ou extrajudicialmente, o fenômeno assediante no contexto laboral, bem como os perniciosos efeitos que essa prática acarreta à saúde física e mental de suas vítimas, impõem uma reflexão tendente a se buscar, dentre outras coisas, suportes norma-tivos aptos a propiciar maior efetividade e proteção aos direitos fundamentais do trabalhador.

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nesse afã, já pulula no seio acadêmico labor-penal alguma discussão a respeito da possibilidade e necessidade de se criminalizar a figura do assédio moral no solo brasileiro - o que, em tese, representaria mais um componente da rede jurídica pátria de proteção da dignidade humana, inclusive a dignidade do homem que trabalha.

Como instância prévia a esse debate, impõe-se, porém, ainda que brevemente, refletir sobre o possível entrave que os fluxos de um garantismo penal representaria para a concretização desse tipo de intento, enquanto instrumento portador de uma mensagem de...

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