O direito ao nome e à identidade de gênero da pessoa transexual: notas sobre o provimento Nº 73/2018 do Conselho da Justiça Nacional

AutorVitor Almeida
Páginas63-97
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Capítulo 3
O DIREITO AO NOME E À IDENTIDADE DE GÊNERO DA
PESSOA TRANSEXUAL: NOTAS SOBRE O PROVIMENTO
73/2018 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
Vitor Almeida1
1. Introdução
A tutela do nome da pessoa humana no ordenamento jurídico
nacional tem sido reconstruída a partir do princípio da dignidade da pessoa
humana, eis que um direito da personalidade previsto no Código Civil de
2002 e consagrado em tratados internacionais. Nessa linha, o nome deve
individualizar dignamente o portador, sem configurar um instrumento de
discriminação e exclusão sociais, nem, muito menos, ser contrário à
própria identidade pessoal.
Nos últimos anos, a lógica registral, calcada no interesse público,
que reclinava para o caráter imutável e obrigacional do nome, tem cedido
espaço para a compreensão fincada na projeção da identidade pessoal como
um dos caracteres estáveis da personalidade humana, que repousa na
individualização de cada pessoa a partir da exteriorização de seu
comportamento no meio social e de suas vontades objetivamente
emanadas. Neste sentido, indiscutível a importância de se examinar o
direito ao nome no cenário jurídico nacional de modo a compatibilizá-lo
com o atual entendimento de proteção integral da pessoa humana, em suas
1 Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor Adjunto de Direito Civil da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). Professor de Direito Civil do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Associado do Instituto Brasileiro de Direito Civil
(IBDCivil). Advogado.
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múltiplas manifestações e atributos, e conformá-lo com a própria
identidade pessoal.
À luz de tais vetores, a alteração do registro civil de pessoas
transexuais tornou-se emblemática nas últimas décadas e demonstra, ao
mesmo tempo, os avanços jurisprudenciais em relação ao tema, bem como
descortina as resistências das instâncias legislativas. Tal cenário descortina
os obstáculos à possibilidade de mudança de prenome e de gênero das
pessoas transexuais como legítima forma de acesso à cidadania e de
inclusão, eis que a promoção da dignidade, nestes casos, vincula-se à tutela
da identidade pessoal, em especial no que tange à afirmação de gênero.
Apesar, portanto, dos inegáveis avanços na matéria, notadamente a partir
da decisão proferida no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.
4.275, em 1º de março de 2018, na qual, por maioria, os ministros do
Supremo Tribunal Federal julgaram procedente o pedido e conferiu
“interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa
Rica ao art. 58 da Lei 6.015/73, de modo a reconhecer aos transgêneros
que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de
transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou
patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no
registro civil”.2
A par da mencionada decisão, o Conselho Nacional de Justiça
resolveu editar o Provimento n. 73, em 28 de junho de 2018, que dispõe
sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de
nascimento e casamento de pessoas transgênero no Registro Civil das
Pessoas Naturais (RCPN). O presente artigo se propõe a examinar, a partir
do direito à identidade pessoal, o conteúdo e o alcance das disposições
contidas no provimento à luz do direito ao nome como expressão estável
da personalidade humana e do direito à identidade pessoal.
2. A evolução do direito ao nome: da verdade dos registros à
expressão da personalidade humana
A tutela do nome civil, tradicionalmente, corresponde, de maneira
equivocada, à sua conceituação como sinal legal identificador da pessoa no
2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 4.275-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco
Aurélio, Redator do Acórdão Min. Luiz Edson Fachin, julg. 01 mar. 2018.
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meio social, atribuindo, assim, primazia a seu aspecto obrigacional
referente ao dever legal de uso do nome aposto no registro de nascimento.
Antes de longo percurso doutrinário direcionado à afirmação do nome na
qualidade de um direito, alguns autores defendiam, com vista à
identificação e com base em um suposto interesse público, a teoria do nome
como instituição de polícia, que se assentava na ideia de exclusividade de
seu caráter obrigacional ao invés de cogitar-se como um verdadeiro
direito.3
Embora as críticas4 tenham invalidado esta tese a ponto de
praticamente ter caído em esquecimento tal concepção, tendo, atualmente,
um valor mais histórico do que validade científica, não se deve
menosprezar os resquícios que o perfil de mera obrigação do nome
manteve no desenvolvimento do tratamento posterior do tema. Em
passagem elucidativa, Manuel Vilhena de Carvalho escreveu: “É, assim,
indubitável que o nome é algo mais que uma obrigação civil”5. Embora o
autor seja contrário à qualificação da natureza do nome como mera
obrigação, não descura completamente da faceta de dever que continua a
permear o tratamento jurídico do nome, que embora um direito, pode sofrer
limitações e restrições impostas pelo Estado em razão da ordem pública.6
Depreende-se, portanto, que não é de hoje que a proteção ao nome
da pessoa convive, de um lado, com o interesse social, em que surge a
obrigação de uso do nome como instrumento de identificação no meio
social e familiar, e, de outro, sua afirmação enquanto direito, que se
desdobra nas faculdades de uso, defesa e reivindicação. Diante desse
contexto, afirma-se que o nome é um “misto de direito e obrigação”.7
Leciona Caio Mário da Silva Pereira que do nome civil projetam-
se os aspectos público e privado, razão pela qual se define o nome como
3 P ara uma b reve exposição d a teoria do nome como obrigação e instituição de polícia
remete-se a CARVALHO, Manuel Vilhena de. Do Dir eito ao Nome: proteção jurídica e
regulamentação legal. Coimbra: Livraria Almedina, 1972, p. 33-35.
4 Expõe o português Manuel Vilhena de Carvalho que “sustentar que o nome tem o caráter
exclusivo de mera obrigação, deixaria sem explicação os diversos meios de defesa privada
do direito ao nome que a doutrina e as legislações, em geral, consagram. [...] O nome não
deixa, assim, de ser objecto (sic) de um direito, conquanto por razões de ordem pública, o
Estado lhe imponha limitações e o torne obrigatório” (Ibidem, p. 34-35).
5 CARVALHO, 1972, p. 35.
6 Ibid., p. 34-35.
7 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. 8ª ed., rev. e atual. por J. S. Santa-
Maria. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996, v. 1, p. 329.

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