Estado de Direito e Democracia: a centralidade do conflito/Rule of Law and Democracy: the centrality of the conflict.

AutorPossas, Thiago Lemos

Introducao

O presente artigo pretende problematizar a questao do "conflito" em relacao ao Estado de Direito capitalista e a democracia. Contemplar o tema relacionando-o a Estado e democracia significa tentar explorar os dois flancos abertos pelo conflito, o das lutas travadas dentro e o das empreendidas fora dos espacos institucionais, em contato com alguns teoricos contemporaneos e suas producoes recentes sobre a tematica dissertada. Para tanto, faz-se necessario discutir a relacao essencial entre Estado e Capitalismo, bem como levantar a definicao atualmente majoritaria do regime democratico e as restricoes que lhe sao impostas pelo mainstream do pensamento politico. Por fim, e de suma importancia tentar identificar quem e o ator privilegiado da sociedade democratica, que estaria apto a protagonizar os conflitos sociais levando a sociedade a uma efetiva transformacao estrutural.

E o que sera desenvolvido nos topicos a seguir.

1 - O conflito no Estado

Para Alysson Mascaro (2013, p. 11, 14), o adequado entendimento do Estado (e da politica) se da por meio da compreensao de sua "posicao relacional, estrutural, historica, dinamica, e contraditoria dentro da totalidade da reproducao social". Para o autor, o marxismo traz a mais alta contribuicao para compreensao do Estado e da politica nas sociedades atuais. Isso se da atraves da reconfiguracao do ambito politico e do ambito estatal, "atrelando-o a dinamica da totalidade da reproducao social capitalista". E primacial que a compreensao do Estado se fundamente "na critica da economia politica capitalista, lastreada necessariamente na totalidade social".

Mascaro (2013, p. 17-18) recorda que a juncao que reune os poderes sociais e bastante solida nos modos de producao pre-capitalistas. A vida social e controlada de maneira mais direta, mais simples, em virtude do congracamento entre o economico e o politico. Nao ha intermediarios institucionalizados de maneira universalizada a ponto de concentrarem em si a resolucao dos conflitos e a imposicao mediata do poder. Essa instancia diferenciada que exercera as aludidas funcoes so surgira com a modernidade. O Estado, destarte, e uma instituicao capitalista e moderna. A modernidade engendra uma sociedade sobre os parametros da troca, advindos da circulacao mercantil, e o Estado ergue-se "como terceiro em relacao a dinamica entre Capital e Trabalho". Ele garante a mercadoria, a propriedade privada e a propria exploracao do Capital sobre o Trabalho, que conta com o ferramental juridico para lhe conferir legitimidade e aparencia de conformacao livre da relacao laboral.

Entretanto, aqui vale destacar que "nao foi a partir de um plano voluntarioso da burguesia (...) que se estruturou o Estado". A identidade entre Estado e capitalismo se perfaz de forma diversa, bem mais complexa e matizada do que propos o marxismo classico. O vinculo entre ambos e muito mais estrutural que ocasional ou dependente da vontade da classe dominante. A especificidade da separacao entre o politico e o economico se deu no capitalismo, especificamente, ja que nas sociedades precapitalistas os poderes politico e economico estao, em geral, imiscuidos (MASCARO, 2013, p. 53-54, 57).

Enquanto as sociedades pre-capitalistas foram instituidas em dinamicas diretas de dominacao social, no capitalismo, diferentemente, a instituicao estatal e forjada de maneira apartada dos agentes que transacionam mercadorias, tanto do capital quanto do trabalho, figurando o Estado como ente terceiro em relacao aos individuos, sujeitos de direito, o que nao lhe garante uma "indiferenca" com relacao as relacoes sociais. O Estado e decisivo na manutencao e desenvolvimento da dinamica capitalista (MASCARO, 2013, p. 59).

O Estado e capitalista, segundo Mascaro, nao por ser um comite gestor dos negocios burgueses (Cf. MARX; ENGELS, 2012, p. 46), mas porque sua "forma estrutura as relacoes de reproducao do capital", de modo que o liame entre a instituicao e o capitalismo e intrinseco nao por um poder de dominacao imediata, mas por razoes estruturais. O Estado e elemento fundamental para a estrutura capitalista. E a forma politica estatal tem sua conformacao apartada da captura imediata por qualquer classe, ao menos em situacoes de "normalidade", e mesmo com a presenca de setores progressistas nela ocupando espacos nao ha alteracao da forma politica estatal, que segue sendo capitalista e comprometida estruturalmente com a reproducao da sociabilidade capitalista (MASCARO, 2013, p. 59-60).

Alysson Mascaro entende que pelo fato da luta dos trabalhadores estar embrenhada na logica da mercadoria, ela serve em alguma medida para chancelar a propria reproducao do sistema capitalista. O mesmo vale para o Estado, que mesmo quando atua no sentido de ampliar o rol dos direitos sociais, permanece no ambito "da logica do valor". O papel das classes inseridas nessa dinamica e muito relevante, "na medida das possibilidades de legitimacao, consolidacao, resistencia ou confronto em face da propria reproducao do capital", sendo fundamental a compreensao da luta empreendida entre as classes para melhor entendimento da variedade das relacoes estabelecidas no amago da sociedade capitalista. Mas se luta de classes denota a situacao da politica e da economia no capitalismo, para alem dela propria "as formas sociais do capitalismo, lastreadas no valor e na mercadoria, revelam a natureza da forma politica estatal". E e, segundo Mascaro, na "forma" que "reside o nucleo da existencia do Estado no capitalismo" (MASCARO, 2013, p. 20).

Deve-se delinear a relevancia da luta de classes no ambito de um sistema capitalista, na tentativa de demarcar quais as suas potencialidades de transformacao do Estado e da realidade social. Entende-se, desta maneira, que a luta de classes pode ter como resultado uma configuracao outra da dinamica instaurada entre Estado e Sociedade. Mesmo que nao haja, atraves dela, o alcance ruptural propugnado pela tradicao marxista, o nivel de "tensao" por ela engendrado nao pode ser de antemao mensurado. E e justamente com a possibilidade de um tensionamento impossivel de se medir antecipadamente que se deve valorizar a luta social numa sociedade marcada pelo conflito.

E isso em virtude de que o Estado guarda relacao profunda e estrutural com o capital, mas ha certa indeterminacao imediata com relacao a reproducao mesmo, como defende a propria "teoria da derivacao", de modo que se ha "derivacao estrutural da forma politica, ha derivacao relativamente singular de suas instituicoes". A forma politica estatal que deriva da forma-mercadoria apresenta variacoes parciais na formacao de suas instituicoes. E o que determinara especialmente as singularidades na formacao das instituicoes politicas e, justamente, a luta de classes (MASCARO, 2013, p. 33).

Assim, ha relativa autonomia (1) estatal frente a dinamica das relacoes sociais, devido a posicao do Estado de garantidor necessario as proprias relacoes capitalistas, sendo que a instituicao estatal e capitalista pela sua forma, e se posiciona para a manutencao das condicoes estruturais (capitalistas) que lhe dao alicerce. O Estado e, portanto, "capitalista" ja que depende do vigor desse tipo de sociabilidade para sua propria sobrevivencia institucional. A instituicao estatal depende do recolhimento dos tributos, o que depende, por sua vez, do desenvolvimento do capital. De modo que o Estado garante a propriedade privada e as relacoes juridicas nela arrimadas, e se mantem em certa medida dependente do processo de valorizacao capitalista. Por isso o seu inescapavel carater intervencionista, que visa retirar o aporte financeiro que lhe e fundamental do "processo capitalista de producao e de valorizacao" (MASCARO, 2013, p. 46-47; HIRSCH, 2010, p. 34, 41).

Claus Offe e Volker Ronge (1984, p. 122-5) tambem expoem uma visao "alternativa" ao paradigma restrito da teoria marxista do Estado, ja que partem do pressuposto de que a instituicao estatal nao favoreceria interesses especificos, nao servindo de "instrumento" de uma classe contra a outra, mas atuando no sentido da imposicao e "garantia duradoura de regras que institucionalizam as relacoes de classe especificas de uma sociedade capitalista". Assim, o conceito de Estado capitalista, abstraindo-se as idiossincrasias historicas, estruturais e funcionais, diz respeito a uma "forma institucional do poder publico em sua relacao com a producao material", tendo quatro determinacoes funcionais mais proeminentes: a dependencia dos impostos, a privatizacao da producao, a acumulacao como ponto de referencia e a legitimacao democratica.

Em sintese, segundo os autores, o objetivo estatal e

[...] criar e preservar as condicoes sob as quais possa perpetuar-se o processo de troca atraves do qual todos os valores da sociedade capitalista sao reproduzidos. O fato de que certos grupos capitalistas (ou categorias da forca de trabalho) sejam mais favorecidos que outros, nao e o objetivo, mas sub-produto necessario de uma politica que esta voltada, de forma abstrata, para a conservacao e a universalizacao da forma-mercadoria (OFFE; RONGE, 1984, p. 123). Mas esse pressuposto estrutural do Estado e sua vinculacao essencial com a manutencao das estruturas capitalistas nao elimina o fato de suas instituicoes serem atravessadas pela luta de classes e influenciadas pelas relacoes sociais em disputa. A luta entre as classes e os grupos no capitalismo sera conformada pela forma estatal, em um processo de implicacao mutua: "se a luta de classes e conformada pelo Estado, este por sua vez esta tambem enraizado nas contradicoes e disputas multiplas das sociedades capitalistas". Luta de classes e forma politica estatal nao sao, neste sentido, categorias excludentes, mas implicadas, engendradas a partir da mesma dinamica (MASCARO, 2013, p. 47, 60).

O que ve e que a luta de classes e o Estado, nessa situacao de imbricacao, se modificam mutuamente, e "tanto a luta de classes esta nas entranhas das formas economicas do capitalismo...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT