Direito Penal e Orientações Políticas

AutorGiuseppe Bettiol - Rodolfo Bettiol
Páginas59-80

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1. O liberalismo e a codificação ocidental

Se a filosofia do direito penal com os valores aos quais ela está ligada é a matriz do direito penal positivo e se a filosofia é também uma interpretação racional de uma determinada situação histórica, nenhum direito penal pode ser entendido abstraindo da situação histórica dentro da qual ele vem à luz e chega à sua maturação. Querer desligar o estudo do direito penal positivo do ambiente histórico que o determinou é como querer estudar botânica com um feixe de flores murcho, quando cada linfa vital é agora enfraquecida e a planta não recebe mais alimento e por isso não está mais em condições de viver. História é sinônimo de civilização, vale dizer de abertura da mente sobre os valores que efetivamente servem para o progresso moral, civil, técnico de um povo. Não há história onde falte tal abertura, onde a mente do homem está ainda obscurecida ou bloqueada, onde o instinto (o puro instinto que liga o homem ao animal) é fundamentalmente lei e regra. Mas logo que o homem reflita e chegue a perceber da exigência do neminem laedere edo suum cuique tribuere, o direito irrompe no corpo social com a precípua função de avaliar em termos positivos ou negativos os comportamentos dos indivíduos. Eis porque aí onde existe um corpo social "aberto" sobre valores existe um ordenamento jurídico que pelos mesmos valores (pela civilização) recebe alimento e justificação. O direito penal que é parte essencial da ordem jurídica encontra-se, então, em direta relação e em estrito liame

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com os momentos mais salientes da civilização de um povo. Fala-se assim sobre o plano histórico de um direito penal romano e de um direito penal germânico que apresentam, ao lado dos momentos comuns, notas particulares muito diferenciadas entre si; fala-se hoje de um direito penal italiano edeum anglo-saxônico com suas diversas peculiaridades; fala-se de um direito penal democrático e de um autoritário, conforme a acentuação que assume a posição de liberdade do cidadão ou aquela de autoridade do Estado; fala-se de um direito penal cristão edeum laicista em relação à diversa intensidade do critério confessionalístico e da sua influência no âmbito da mesma legislação, e assim por diante.

Tudo isto significa que o estudo do direito penal se torna um enigma em que se pretende isolar odadojurídicodetodoocomplexoideológicoquecaracterizaaépocahistóricanaqualele,direito penal, veio à luz. Quem poderá entender, por exemplo, o espírito e a capacidade do código penal italiano de 1889 (código penal Zanardelli) isolando-o da sua matriz ideológico-política liberal? E assim quem jamais poderá penetrar na alma do código penal do Reich alemão de 1871 sem conhecer a essência de um liberalismo conservador de direita de pura marca hegeliana? Quem jamais poderá entender o código penal soviético de 1926 e de 1960 sem conhecer a doutrina marxista-leninista da qual ele é a expressão? Há momentos do ordenamento jurídico que menos sentem de tal origem ideológico-político-cultural (ex. direito cambiário e direito das obrigações), aí onde o direito penal está tudo nas normas de civilidade (para usar a expressão de M. E. MAYER) por meio das quais vai o oxigênio vital. Tudo isto traz dificuldades quando se quer comparar entre si distintas legislações penais: não se trata, na verdade, de sublinhar somente os momentos idênticos ou aqueles diversos (o que é ainda obra de pura lógica formal ou nominalística), mas de explicar as assonâncias ou as dissonâncias em relação aos diversos tipos de civilização aos quais correspondem as diversas legislações. A momentos formativos idênticos podem, ao contrário, corresponder substanciais razões de contraste, ligadas às diversas ideologias das quais os códigos em exame são portadores. Não é com a lógi-

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ca formal que a comparação deve ser explicada ou levada adiante, mas com a teleológica, vale dizer, com uma lógica que colhe as finalidades ou os escopos determinantes de um dado tipo de legislação.

Hoje não há no mundo uma plataforma ideológica comum. Ela existiu no passado, mesmo num passado recente, quando cada ordenamento jurídico (penal) se distinguia dos outros somente por razões prevalentemente acidentais ou formais. Até o fim do século XVIII, a Europa, na qual se identificava o mundo civil, se regulava sobre o plano penal sobre a base de critérios comuns de avaliação, extraídos de um lado pelas elaborações dos práticos ou pós-glosadores referidas aos textos do libri terribiles do Digesto (os últimos três) ou aos particulares textos de lei que os monarcas tinham emendado (no império é suficiente lembrar a legislação penal de Carlos V) e iluminada do outro pela presença de normas consuetudinárias e dos precedentes judiciais que em parte tinham também amolecido a particular aspereza do direito penal daqueles tempos. E não deve ser esquecida a importância que teve para a determinação de uma plataforma comum de civilização a presença científica dos grandes moralistas católicos (especialmente espanhóis) que trouxeram uma grande contribuição à clarificação de importantíssimas noções indispensáveis para uma justa interpretação de duras e arcaicas disposições de lei. SUAREZ e CAVARRUBIAS são nomes altamente beneméritos que influíram decididamente sobre um processo de gradual "humanização" das categorias penalísticas num mundo ainda ligado a formas que a ciência moderna repele. Sob o influxo das doutrinas dos moralistas e dos juristas ou comentaristas católicos tinha-se criado na Europa uma plataforma ideológica comum a todos os Estados no esforço gradativamente dirigido para alcançar consciência completa e sistemática de todos os problemas penalísticos. Também sem o irromper dos princípios do Iluminismo francês teríamos tido uma transformação das estruturas de fundo do direito penal, sobre o convencimento que ele não pode apresentar-se como instrumento de prevaricação para oprimir a liberdade e a dignidade da pessoa humana, que deve gozar de uma posição de prioridade relativamente a toda outra

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consideração de escopo particular ou geral. Mas foi, porém, o Iluminismo francês a colher o profundo significado de tal priori-dade, prestando-o como fundamental exigência política de renovação e atribuindo à mesma uma justificação filosófica ligada a uma visão autônoma do mundo moral que nós cristãos repelimos. Mas se repelimos o fundamento laicista da moraldaqualsurgiua Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789, não podemos considerar tais direitos em contraste com a visão que temos do homem e do cidadão sempre toda protendida para a salvaguarda das posições individuais de liberdade responsável.

Não há dúvida de que sobre a base da famosa Declaração (à qual hoje se ligam análogas declarações das Nações Unidas de 1948 e do Conselho da Europa de 1950) vieram à luz importantes legislações européias. Quero lembrar o código penal Napoleão de 1810, que é ainda hoje, mesmo com adequadas modificações, o código penal da República francesa, o qual pode ser considerado como o primeiro código penal "secularizado", vale dizer elaborado sobre a pauta de uma moral laicista que em substância recusa-se a reconhecer significado determinante aos valores religiosos também para os fins de sua tutela. Característica fundamental do mesmo código, todo protendido para a garantia das liberdades individuais, é a coerente aplicação do princípio de estrita legalidade quer no que diz respeito ao reato (nullum crimen sine lege) quer no que diz respeito à pena (nulla poena sine lege), mesmo à custa de criar tipos por demais rígidos de reatos e das penas fixas e drásticas enquanto orientadas para o critério da prevenção geral. Trata-se de um código penal que hoje julgamos particularmente severo, e que, todavia, no momento histórico no qual veio à luz, representou uma virada na legislação penal, porque se inseria no novo clima do Estado de direito que o liberalismo vinha instaurando na Europa depois do arbítrio de um tempo. Estado de direito entendido ainda num sentido puramente formal, mas, de qualquer forma, um superamento das estruturas de um Estado de polícia, o qual negava ao cidadão toda garantia de liberdade. O código penal Napoleão é, ao contrário, o primeiro código europeu animado por uma tal

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fundamental preocupação: o que foi de grande significado histó-rico e jurídico. Diz BOUZAT que o código penal Napoleão pode ser julgado como um código severo, empapado de espírito utilitário, na via de meio em tema de poderes discricionários do juiz, baseado sobre abstrações.

Fruto de uma concepção liberal-iluminística, deve sem mais considerar-se o código penal bávaro de 1813, devido à mente de um jurista como FEUERBACH. Também este código, de direta inspiração francesa, é um código que particularmente se preocupa em descrever claramente os casos concretos delituosos ou os tipos de reato e de não deixar nenhuma margem ao juiz no que diz respeito à pena. Sob a influência do pensamento científico e sistemático alemão, ele apresenta dados de particular clareza e é tecnicamente sobre posições mais avançadas do código penal francês. Juntamente com o código prussiano de 1851, ele é indubitavelmente a legislação inspiradora do código do Reich de 1871, no qual o liberalismo inspirador se dispôs para a ideologia estadual prussiana, considerada de pura inspiração hegeliana mesmo se de um HEGEL interpretado segundo exigências políticas de direita conservadora.

Contudo, o código penal italiano de 1889 (o primeiro código penal unitário) nasce sobre uma plataforma política comum européia e é um código penal de pura inspiração liberal, como foi, sobretudo, o código penal toscano de 1854, dito código MORI. A preocupação de se inserir num clima de Estado de direito supera toda outra exigência. A...

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