Direito à saúde prevalece sobre direito de ir e vir em tempos de Covid-19

Em 2018, a gripe espanhola — pandemia que matou milhões em todo o mundo — completou 100 anos. Os principais núcleos de saúde e ciência, como a Organização Mundial de Saúde, a Academia Nacional de Ciências e o CDC — Centers for Disease Control and Prevention – reconheceram, na ocasião, a possibilidade de o cenário se repetir, haja vista o potencial de mutação das cepas e a possibilidade de se desenvolverem a partir de um vírus originariamente animal, consideradas a falta de imunidade dos seres humanos e a inexistência de uma vacina de espectro geral. "Com o crescimento das viagens globais, uma pandemia pode se espalhar rapidamente em todo o mundo com pouco tempo para preparar uma resposta à saúde pública", alertou a OMS na ocasião.

As respostas se confirmaram e o remédio veio com um gosto bastante amargo: quarentena, isolamento, lockdown, colapsos nos sistemas de saúde, perecimento das economias. Empobrecimento. Sufocaram-se os abraços, os beijos e os apertos de mão, até mesmo quando são os últimos.

A contenção da pandemia do novo coronavírus é desafio mundial que pode exigir a aplicação de medidas rígidas. Restrições antes impensáveis, hoje são adotadas por Estados democráticos e não democráticos, em prol da preservação da saúde pública e da própria sociedade. Em contraposição a efetivação dessas medidas, questiona-se o avanço do Estado sobre direitos fundamentais do cidadão, especialmente sobre o direito de ir e vir (CF, art. 5º, inciso XV), que é constitucionalmente assegurado por meio de uma abstenção do Estado, uma obrigação de não fazer.

Vislumbra-se, neste momento, uma aparente colisão entre a manutenção irrestrita dessa liberdade individual frente aos direitos fundamentais à vida (CF, art. 5º, caput) e à saúde (CF, art. 6º, caput) de todos os cidadãos, bem como a possibilidade da potencialização de risco ao próprio Sistema Único de Saúde (SUS), de caráter universal.

Indiscutivelmente, nenhum direito fundamental é absoluto, como não o é o direito de ir e vir. Se por um lado esse direito deve ser exercido nos termos da lei, podendo ser restringido em decorrência de uma situação excepcional não previamente prevista na Constituição, por outro não pode ser esvaziado enquanto garantia constitucional, necessitando ser assegurado o núcleo essencial do próprio direito.

A vida em sociedade e a efetividade da democracia demandam a abdicação de vontades individuais em prol de uma ordem lógica coletiva, de uma vontade que satisfaça, se não a todos, pelo menos à maioria. Não se questiona o modelo idealizado, mas a prática traz os mais diversos desafios relacionados às minorias, seja pela necessidade de medidas positivas para sua a inclusão, seja para obrigá-las a se ajustarem a maioria.

O novo cenário ocasionado pelo Covid-19 põe em discussão a supremacia da saúde pública (art. 6º) sobre os demais direitos, como a liberdade de locomoção (art. 5º, inc. II e XV, CF), de reunião (art. 5º, inc. XVI, CF) e até mesmo da inviolabilidade da intimidade (art. 5º, inc. X e XII, CF), entre outros.

A maioria da população, pelo menos no princípio, anuiu às medidas restritivas de circulação impostas pelas três esferas de governo, como suspensão de aulas, viagens, eventos com aglomerações, atividades de bares e restaurantes, cultos e missas, jogos de futebol e outros mais. O medo do contágio definitivamente se sobrepôs ao lazer, aos estudos e até ao trabalho e religião. No entanto, não são apenas essas limitações que merecem ser discutidas, mas tantas outras, como o fechamento de estradas e rodovias, a vedação de contato com entes queridos e a proibição de visitas a pacientes infectados pela doença, dentre outras.

A esdrúxula situação de se despedir de pacientes terminais por uma tela de celular já se delineia como uma alternativa em território nacional. O Rio de Janeiro, via Decreto 47.027 publicado em 13/4, expressamente proibiu visitas a pacientes infectados. As Secretarias de Saúde de outros Estados, como Distrito Federal e Espírito Santo também publicaram Portarias no mesmo sentido, limitando as visitas.

No exterior, após muita indignação com a situação de morte em isolamento, países como Itália (“o direito de dizer adeus”) e Espanha (Acortando la distancia) movimentaram projetos sociais a fim de promover a disponibilização de tablets para pacientes em estado crítico. Muito embora tenha sido o modelo escolhido e adotado em outros países, será essa uma decisão que satisfaz a legislação brasileira? Sobre esse aspecto, ressalte-se que o ECA, no artigo 12, determina que o menor de idade, quando internado, deve ser acompanhado por pelo menos um de seus responsáveis. Na outra ponta da vida, o Estatuto do Idoso, em seu artigo 16, garante ao idoso internado acompanhante em tempo integral. O mesmo está previsto às...

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