Direito, Utopia, Evento: Uma constelacao de duas trajetorias/Law, Utopia, Event: A Constellation of Two Trajectories.

Autorvan der Walt, Johan

Prelúdio Minhas Senhoras e meus Senhores, de que falo eu realmente quando, a partir desta direção, nesta direção... falo do poema? ... E assim o poema seria o lugar onde todos os tropos e metáforas querem ser levados ad absurdum. Investigação topológica? Certamente! Mas à luz do que é objeto da pesquisa: à luz da u-topia. (1) Meine Damen und Herren, wovon spreche ich denn eigentlich, wenn ich aus dieser Richtung, in dieser Richtung... von dem Gedicht spreche? ... Das Gedicht wäre somit der Ort, wo alle Tropen und Metaphern ad absurdum geführt werden wollen. Toposforschung? Gewiß! Aber im Lichte des zu Erforschenden: im Lichte der U-topie. (2) 1. Introdução (3)

Nós começamos com o prelúdio acima em razão de Celan evocar a palavra "U-topie" na última linha. Nós assim fazemos pelo fato de Celan refletir com sua evocação da "U-topie" a transformação fundamental à qual a imaginação utópica foi submetida ao longo do Séc. XX. Essa transformação ficou bastante evidente em algumas tendências proeminentes do pensamento filosófico desse século. O papel da filosofia nessa transformação provavelmente foi mais performativo que constatativo. A filosofia, ou pelo menos alguma filosofia, refletiu e registrou claramente essa transformação, e ao assim fazê-lo, contribuiu com tanto. A transformação da imaginação utópica não foi, contudo, uma obra exclusiva dos filósofos. Ela se viu refletida e efetuada por intuições artísticas e literárias. As linhas evocadas acima - a reflexão de um poeta sobre a poesia são, sem dúvida, um exemplo eminente.

A direção dos pensamentos filosófico, artístico e literário ora em discussão pode ser descrita, em um primeiro momento, como uma resistência à maneira pela qual a linguagem e as exigências por uma comunicação clara acabam reduzindo a singularidade totalmente incomparável de entidades singulares ou pessoas ou eventos às instâncias genéricas repetíveis de identidade fixa e significado estável. O que é assim posto em questão, seguindo Theodor Adorno, é a busca linguístico-negativa pela não-identidade da existência singular, que transcende ou excede o impulso forjador de identidades da linguagem conceitual. Essa busca linguístico-negativa é utópica em razão do modo pelo qual ela contempla a possibilidade do impossível, nos termos escolhidos por Jacques Derrida, ao receber o prêmio Adorno em 2001. (4) Contemplam-se relações completamente não instrumentais entre indivíduos, relações que não sujeitariam ninguém à instrumentalização sistemática operante em todos os esquemas conceituais generalizantes.

O Direito estaria no extremo desse impulso forjador de identidades da linguagem conceitual, segundo Adorno. O Direito seria, portanto e evidentemente, um tipo hiperconceitual de linguagem, o impulso genérico mais extremo que ignora e suprime a não-identidade e a alteridade irredutível da existência singular. A busca por não-identidade aparece como uma questão para aquele pensamento apresentado por Adorno como uma "dialética negativa", um pensamento que se constitui, assim, como um esforço em se distanciar o máximo possível da busca do direito por forjar identidades, bem como de toda linguagem que rende o seu conteúdo através de predicações genéricas ou generalizantes. A dialética negativa e o Direito se movem em direções opostas, sendo exatamente essas direções ou trajetórias opostas que Celan parece contemplar ao evocar as duas direções - a partir desta direção e nesta direção (aus dieser Richtung, in dieser Richtung). A quarta seção (A Resposta Utópica ao Evento) retornará a Celan, com vistas a uma elaboração mais aprofundada deste ponto.

Por que se referir à transformação da imaginação utópica nos movimentos filosóficos, artísticos, poéticos e literários ora destacada? De que maneira filósofos como Adorno e poetas como Celan mudaram a imaginação utópica? Como era a imaginação utópica antes de ser mudada pela filosofia, poesia e arte do séc. XX? A imaginação utópica começou com Platão e persistiu por muitos séculos - no pensamento de um São Francisco, More, Rousseau e Marx - como uma denúncia tópica e típica da propriedade privada. Tipicamente, a propriedade privada era vista como a origem de toda injustiça social e de todas as formas de alienação da sociedade. A imaginação utópica, consequentemente, vingou em uma resistência socialista consideravelmente previsível e genérica em face às instituições da propriedade privada, antes de se transformar - em alguma medida já nas obras de Marx e, então, de maneira bem evidente na obra de Adorno e dos neomarxistas - em um questionar muito mais radical da propriedade linguística e conceitual enquanto tal. Esse questionamento radical da propriedade linguística - que Celan descreve acima como o desejo da linguagem de abandonar sua busca regular por significado, retornando e reentrando no absurdo - não foi, contudo e evidentemente, um desenvolvimento exclusivamente marxista ou neomarxista. Trata-se de um movimento mais amplo no pensamento filosófico do séc. XX, conforme manifesto na fenomenologia, no pós-estruturalismo e na desconstrução. Reflexo este que é também claramente discernível, conforme já mencionado, nas sensibilidades artísticas e literárias mais proeminentes desse século. A segunda seção desse ensaio (A Transformação da Imaginação Utópica) rastreará esse desenvolvimento, de Platão a Foucault (e Artaud), chegando, por fim, ao romancista italiano Italo Calvino.

O romance Se um viajante numa noite de inverno é introduzido em uma discussão acerca da transformação do pensamento utópico; isso assim se faz em razão da maneira pela qual ele clarifica, na esteira do chamado ao "absurdo" de Celan, o que está em disputa, em última instância, nessa transformação. Uma imaginação utópica que resiste à propriedade linguística e conceitual enquanto tal se desqualifica, logicamente, de buscar de maneira válida uma concepção alternativa de propriedade normativa. Ela não pode oferecer nenhuma visão alternativa do social que seja "mais própria" que aquelas atualmente consideradas próprias ou impróprias. Sequer se pode falar em uma noção de relações sociais não-alienadas que sejam mais "próprias" à existência humana que as alienações sociais resultantes de relacionamentos pautados na propriedade privada. Aquilo visado por essa imaginação utópica não pode ser nada que possa ser chamado como "próprio" ou "mais próprio". Por esse motivo a noção de evento adentrou e alterou a imaginação utópica e, também por isso, é o evento que designa o elemento central do pensamento utópico contemporaneamente. É assim que a imaginação utópica passou a ser radicalmente não-normativa, em sua busca por qualquer ocorrência que desestruture aquilo que é próprio em todos os sentidos possíveis da palavra. Consistentemente, nenhuma justificativa foi oferecida ou buscada para tanto. Silenciosa, mas evidentemente, sua preocupação para com o evento fui simplesmente assumida como uma maneira de resistir às identidades que a construção social impunha à existência. "Loucura para além da insanidade", nas palavras escolhidas por Foucault. Celan, por sua vez, menciona o "absurdo". Calvino, como veremos, fala sobre "uma perturbação que ainda não tem nome [e] nem ainda tomou forma." Assumindo aquilo que pode se chamar generalizadamente por tradição do pensamento fenomenológico, eu me apoiarei na noção de "evento" para denotar essa "perturbação sem nome", essa "absurdidade" e essa "loucura".

Entretanto, a compreensão do evento elaborada nesse ensaio não ficará confinada à sua versão posta em circulação pela imaginação utópica. De fato, pode-se dizer que o inesperado mérito epistemológico da imaginação utópica foi ter chamado a atenção científico-social a se voltar para um conceito que pode ser usado como um ponto de partida analítico a permitir a descrição instrutiva seja da imaginação utópica, seja da imaginação não-utópica. É isso que será feito nesse ensaio. Informado pela preocupação fenomenológica para com o evento, a aparência ou emergência absurda da existência singular, bem como pela incitação de Celan destacada acima, esse ensaio descreverá a relação entre o Direito e a imaginação utópica nos termos do começo comum de duas trajetórias de responsabilidade. Essas trajetórias de responsabilidade, a jurídica e a utópica, partem caminhos distintos no momento em que elas emergem do evento que as catapulta ambas à existência. A imaginação utópica não tem uma pretensão exclusiva ou relação exclusiva, portanto, com o evento. O Direito também é fundamentalmente relacionado ao evento. O Direito também é uma resposta ao evento, ainda que uma resposta muito diferente.

Em outras palavras, os pensamentos jurídicos e utópicos têm um ponto de partida comum, a partir do qual eles se movem em direções opostas. A relação entre Direito e imaginação utópica pode ser descrita, então, como uma contiguidade não-sobrepujante. Direito e imaginação utópica se tocam - ou podem se tocar -, em razão de serem originados conjuntamente e terem um ponto de partida em comum. Mas daí em diante, eles partem em direções opostas, em virtude da busca de dois tipos diferentes de responsabilidades e respostas. Respostas a o que?, pode-se perguntar. O Direito e o pensamento utópico, seguindo a sugestão da fenomenologia, são duas respostas ao evento do qual eles emergem. Trata-se de dois modos de responsabilidade que emergem de respondem a um evento ou acontecimento primordial. Mas suas respostas se fazem de duas maneiras muito diferentes.

A seguinte imagem pode ajudar: imagine-se dois trapezistas, de pulsos amarrados, arremessados no espaço, advindos de uma origem da qual, daqui em diante, eles só terão uma vaga, e cada vez mais vaga, memória. A relação entre eles começa no momento em que os pulsos se separam (de fato, pode-se dizer que todas as pluralidades e relações têm seu começo com um "separar de pulsos"). A relação entre Direito e imaginação utópica se inicia no momento em que eles se afastam um do outro, em um salto...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT