Do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito: dos direitos individuais aos direitos transindividuais

AutorAcelino Rodrigues Carvalho
Ocupação do AutorAdvogado, especialista em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional
Páginas55-77

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Modernamente em seu nascedouro, o Estado de Direito apresentava um conceito eminentemente liberal, falando-se, por isso, em Estado Liberal de Direito.1 Na base de suas formulações teóricas,

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como já anunciado, estavam as teses contratualistas, cujos expoentes, consoante José Luis Bolzan de Morais,2 foram Thomas Hobbes, Jean Jacques Rousseau e John Locke. Contrapondo-se a uma concepção organicista que concebe a sociedade como algo natural ao homem, o contratualismo vê nesta uma criação artificial, produto da razão humana, mediante um acordo de vontades celebrado pelos indivíduos quando ainda no estado de natureza, hipótese imaginada para justificar a existência da sociedade política organizada.

Para Hobbes, no estado pré-social, onde imperava a lei do mais forte, o homem era movido por paixões, sobejando, portanto, a insegurança e a guerra generalizadas. Diferentemente pensava Rousseau, para quem, naquele estado, os homens nasciam livres e iguais, desfrutando de felicidade plena, tornando-se aprisionados a partir de sua entrada no estado civil, tornando-se fundamental, neste caso, o estabelecimento da propriedade privada. Já para Locke, que foi o principal teórico do liberalismo, no estado de natureza o homem desfrutava de uma paz relativa e o uso da razão já lhe permitia a compreensão acerca da existência de certos direitos naturais, como a vida e a propriedade, faltando, porém, uma autoridade capaz de resolver eventuais conflitos e impor coercitivamente suas decisões, evitando, com isso a proliferação de guerras.

Assim, enquanto Hobbes vê no estado de natureza uma situação de guerra e insegurança constantes, Locke imagina um estado virtuoso, onde os interesses e experiências pessoais constituem um valor em si mesmo, sendo o conjunto de desenvolturas individuais a melhor alternativa para a vida em sociedade: "eis o individualismo liberal surgindo com toda a sua força da construção teórica de John Locke".3 Com efeito, tal como as situações vividas pelos homens no hipotético estado de natureza, também foram diversas as soluções

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apresentadas pelos autores supra referidos para os problemas por eles enfrentados e, por conseguinte, a configuração do Estado e o conteúdo do Direito que daí emergiria.

Para pôr fim às guerras, Thomas Hobbes propôs a celebração de um pacto entre os indivíduos através do qual estes, preocupados com a preservação da própria vida, abririam mão de todos os poderes naturais que possuíam, transferindo-os a um terceiro em troca de proteção e segurança. Desta proposição, decorre o protótipo de um Estado absolutista, porquanto somente ao sujeito coletivo, desvinculado de qualquer referencial anterior à sociedade política, caberia a definição dos limites de sua atuação e, por conseqüência, do Direito que haveria de produzir. Aqui, como ressalta José Luis Bolzan de Morais,4 "o Estado se constrói pela demarcação de limites pelo soberano que, por não ser partícipe da convenção instituidora e, recebendo um poder sem parâmetros, tem aberto o caminho para o estabelecimento do Direito".

Em direção oposta e em consonância com os interesses da burguesia emergente, que aspirava a conquista do poder e a implantação do seu projeto político, John Locke propôs a realização de um pacto visando, exatamente, à preservação de todas aquelas condições em que se encontravam os homens em seu imaginário estado de natureza. Em outras palavras, o contrato social, em Locke, pressupõe a existência de direitos do homem no estado de natureza, dos quais este desfruta com inteira liberdade e autonomia, sendo tais direitos transferidos para o estado civil, cabendo ao sujeito coletivo, a quem se transfere a soberania, a preservação, não apenas daqueles direitos, mas também das condições de liberdade para o seu exercício e para a expansão do indivíduo.

Como esclarece o mencionado autor, o reconhecimento da existência e a pretensão à permanência dos direitos naturais delimitam o conteúdo do pacto lockeano, destinando-se este a preservar e consolidar os direitos preexistentes no estado de natureza, bem como a

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prevenir e evitar a generalização dos conflitos que, eventualmente, viessem a ocorrer. Por meio dele, os indivíduos manifestavam concordância com sua entrada no estado civil e com a posterior formação do governo, surgindo, daí, o princípio da maioria.

Com efeito, o estado civil nasce duplamente limitado: "por um lado, não pode atuar em contradição com aqueles direitos naturais pré-sociais; por outro, deve garantir o mais completamente possível a usufruição dos mesmos. Nasce, desta forma, como poder circunscrito àquela esfera de interesses pré-estatais do indivíduo natural. O estabelecimento da lei civil, do juízo imparcial e da força comum tem um papel assecuratório dos direitos naturais inalienáveis. Os indivíduos, ao contrário do que ocorre em Hobbes, abandonam um único direito: o de fazer justiça pelas próprias mãos. Ou seja, o estabelecimento do Estado visa exclusivamente à criação de um poder capaz de garantir a continuidade da paz natural. A soberania absoluta, incontrastável, do primeiro cede passo à teoria do pai do individualismo liberal, na qual ainda consta o controle do Executivo pelo Legislativo e o controle do governo pela sociedade", que é o cerne do pensamento liberal.5Foram essas idéias de John Locke que acabaram por influenciar o terceiro estado,6 fazendo eclodir a Revolução Francesa, o mais importante dos acontecimentos históricos que marcaram o rompimento com as estruturas de poder então vigentes e o surgimento do Estado

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Liberal.7 Anota Paulo Bonavides8 que a sociedade da época vivia um período de revolta generalizada, quando a ideologia evoluiu para formas de concretização imediata. Era necessário sepultar os espíritos da Idade Média, o corporativismo feudal e seus privilégios, assim como o absolutismo do monarca e suas contradições com relação aos tempos modernos.9 "Diluía-se o organicismo social de outros tempos nas vastas antíteses que haveriam de emprestar feição mecanicista à sociedade e reduzir o corpo social a uma poeira de átomos refletida nos exageros da teoria individualista".10

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Foi neste contexto histórico-filosófico que nasceu o Estado Liberal de Direito,11 cuja nota central consiste numa "limitação jurídico-legal negativa, ou seja, como garantia dos indivíduos cidadãos à eventual atuação do Estado, impeditiva ou constrangedora de sua ação cotidiana".12 A este cabia, tão-somente, estabelecer os instrumentos jurídicos destinados a assegurar o livre desenvolvimento das pretensões individuais, ao lado das restrições impostas à sua própria atuação positiva.

Por conseguinte, têm-se como traços característicos desta modalidade de Estado: a) o princípio da legalidade, concebida a lei como ato formal emanado do Poder Legislativo, integrado por representantes do povo, mas somente daquela parcela do povo considerado cidadão; b) a limitação de poder, consistente, de um lado, na divisão de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário, como técnica destinada a assegurar a adequada produção legislativa pelo primeiro, e a independência e imparcialidade em sua aplicação pelo segundo e, de outro, no reconhecimento e garantia dos direitos individuais trazidos pelo homem do estado de natureza.13

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De lado uma análise mais acurada acerca de todas essas características, importa, aqui, destacar três aspectos relacionados ao Estado Liberal de Direito, considerados indispensáveis para o atingimento dos objetivos propostos no presente estudo, a saber: a natureza dos direitos reconhecidos no que diz respeito à sua titularidade, a presença do elemento democrático e o papel desempenhado pela lei no Estado Liberal.

No que diz respeito ao primeiro aspecto, é de se lembrar, inicialmente, como foi dito anteriormente com Celso Lafer, que o direito subjetivo é uma figura jurídica representativa do individualismo no seu desenvolvimento teórico. De fato, de acordo com José Luis Bolzan de Morais,14 na visão da tradição liberal, erigiu-se um conceito fundamental à explicação e embasamento do interesse individual queéode direito subjetivo, o qual é produto da reunião daquele interesse com a garantia oferecida pela ordem jurídica.

Todavia, essa noção de interesse individual imanente à de direito subjetivo não se refere somente ao indivíduo pessoa física, como já referido. Consoante explica Tercio Sampaio Ferraz Junior,15a estrutura do direito subjetivo aponta para elementos básicos que, por sua vez, constituem outros conceitos jurídicos fundamentais, podendo-se destacar, dentre eles, o conceito de sujeito de direito ou sujeito jurídico.

Enquanto ser humano, o sujeito jurídico é o titular de um direito ou de um dever correspondente, falando-se, neste caso, em pessoa, cujo conceito é atribuído ao cristianismo e está relacionado com a dignidade do homem, o qual jamais pode ser visto como mero objeto.

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Destarte, pessoa significa o indivíduo, pessoa física ou natural. Entretanto, não só o homem pode ser considerado sujeito de direito, mas igualmente as sociedades mercantis, as associações em geraleopróprio Estado, falando-se, assim, em pessoa jurídica ou pessoa moral.

Anote-se, por outro lado, a preocupação do liberalismo quando, ao estabelecer modernamente os contornos da summa divisio público-privado, propugnou pela eliminação de todos os corpos intermediários, como já anotado, considerados representativos do antigo regime, já que as formações sociais intermediárias tinham constituído a estrutura portadora do feudalismo. Na visão individualista da sociedade que prevaleceu com a Revolução Francesa, a nação deveria ser una e indivisível e o Estado concebido como um composto de cidadãos. Os grupos intermediários foram então varridos, tendo, inclusive, a municipalidade se transformado em mera subdivisão do governo estatal; somente a família sobreviveu como grupo intermediário entre o Estado e o individuo isoladamente considerado.16Com efeito...

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