Drogas, urbanismo militar e gentrificacao: o caso da "Cracolandia" paulistana/Drugs, military urbanism and gentrification: the case of the Sao Paulo's "Cracolandia".

AutorAmaral, Augusto Jobim do

Introdução

Os processos de urbanização atuais não distam daquilo que Dardot e Laval chamaram de "a nova razão do mundo" (2016). O modo de vida neoliberal, aliado a sua comodificação mercantil, longe de ser um paradoxo, necessita do Estado para atingir seus objetivos. É o mercado gestando vidas e tendo o Estado como parceiro para construir este terreno propício.

Por meio da urbanização, o capital também investe seu excedente, utilizando diversas estratégias para fazê-lo. Em termos político-criminais, apesar do seu fracasso assumido, talvez o mais importante mecanismo seja ainda a chamada "guerra às drogas", capitaneada pelo proibicionismo, que, historicamente, sempre acabou recaindo no controle de parcela da população.

Nesse sentido, o presente estudo debruça-se, em um primeiro momento, na análise da guerra as drogas, diretamente, desde suas consequências--a saber, em especial, encarceramento em massa e o controle de determinadas parcelas da população --, bem como surpreender seu argumento padrão acerca dos malefícios que determinadas substâncias causam ao organismo, criando imagens mitificadas sobre certos psicoativos. Naturalmente, ao propósito deste trabalho, destaque especial se dá ao caso do "crack".

O "crack" é, por excelência, depositório de medo e temor sociais. A premissa quase inafastável é seu descontrole em todos os sentidos: a partir da primeira tragada, o destino ou é caixão ou cadeia. E, a partir desse discurso, justificam-se os mais variados modos de violência, sobretudo em termos de governo dos corpos através dos espaços urbanos. Daí a importância de se analisar o caso da "Cracolândia" paulistana.

Assim, diretamente, frente a este recorte que combina uma reflexão de política criminal, urbanismo e governo dos corpos, a hipótese do presente artigo aponta que as estratégias governamentais, no caso específico do poder público paulistano, estariam utilizando a política de guerra às drogas, aprofundada pela demonização do "crack" para, por meio de estratégias de urbanismo militar, direcionar suas políticas no sentido da "gentrificação" dos espaços. Ou seja, sob o pretexto de revitalização da região central de São Paulo, segrega-se parcela miserável da população vulnerabilizada pelo uso problemático da droga. Mediante a retirada dos moradores locais, e a consequente disposição ao mercado da região da Luz, uma gestão neoliberal dos espaços volta-se a vender São Paulo como uma "cidade global".

Portanto, desde a utilização de um método de levantamento bibliográfico e documental sobre o tema, combinado com a análise de dados de forma indireta, através de pesquisas de campo já realizadas, é que o problema do trabalho encontra amparo: entender como a guerra às drogas é utilizada como mecanismo gerencial para, por meio do urbanismo militar, atingir objetivos neoliberais de revitalização de espaços, refletindo-se em evidente processo higienista de gentrificação social.

1 Guerra às drogas e a governamentalidade dos descartáveis

A frase "Guerra é paz" (ORWEL, 2009, p. 14), lema do Partido no livro 1984 de George Orwell, bem se encaixa quando necessário ler o contexto mais bem apurado de guerra às drogas que tem-se, qual seja, o cenário norte-americano--modelo que serve de metástase pelo mundo. Não era, em 1984, uma guerra somente contra nações estrangeiras, mas sim em face de cada cidadão do próprio país (PAVLOSKI, 2014, p. 377). Ali é refletida a ideia de um inimigo permanente, e o seu combate deve se dar desde uma afinada "governamentalidade" (no sentido foucaultiano do termo (1)), utilizada para gerir a ordem e dar continuidade a um exercício bélico através do poder político.

De fato, o combate a substâncias tornadas ilícitas naquele país deve ser lido desde seus reais motivos, que não eram os declarados pelo governo norte-americano, ou seja, a partir do controle e extermínio de grande parcela da população negra norteamericana. (BAUM, 2018). Uma política de guerra sustentada por um ódio canalizado, controlado e construído em favor da manutenção do poder, onde a droga é posta para alimentar um sistema de preconceitos e permite a tomada de medidas securitárias extremas, cujo fim último é o domínio da sociedade--ou de parte dela (TIBURI, 2013, p. 47).

Esse modo de "governar através do crime" (2) sempre esteve conjugado com um "estado de emergência" (WACQUANT, 2003, p.19), disposto a regular o olhar coletivo em relação às perturbações da vida pública. Tal tendência, assim, consolida-se pela (re)organização da vida e do mundo, por uma securitização sem precedentes (SIMON, 2017, p. 93-96) em que o medo existe como afeto político-criminal central para gerir o crime e a crescente validade do ideal de vítima.

A substituição do Estado caritativo por um penal e policial dá-se, prioritariamente, pela contenção punitiva de categorias desprovidas de políticas sociais, no qual o comportamento de cidadãos despossuídos e dependentes deveria ser acompanhado de perto, e corrigido quando necessário (WACQUANT, 2003, p. 86-112). Efeito de tais atos será o aumento nos índices de encarceramento. A prisão sempre colocou-se como importante componente de contenção repressiva da pobreza. No caso americano, após ter diminuído cerca de 12% durante a década de sessenta, aumentou consideravelmente em meados da década de setenta, passando de duzentos mil detentos nesse ano para cerca de um milhão em 1995--um crescimento de 442% em um quarto de século. Entretanto, o encarceramento atingiu prioritariamente afro-americanos de bairros urbanos, e teve como principal motor a política de guerra às drogas declarada por Nixon e levada a cabo por Reagan na década de oitenta--sem razão, entretanto, pois o consumo de drogas como a maconha e a cocaína, por exemplo, estavam em declínio antes disso (WACQUANT, 2003, p. 113-115). Alexander (2017, p. 95-96) arremata perfeitamente que este fato não passa de uma nova forma de segregação racial, sendo o aprisionamento outra forma de marginalização da comunidade afro-americana nos Estados Unidos.

Ademais, outros países seguiram a mesma lógica norte-americana, "modelo universal para o planeta" (SOUZA, 2017, p. 26), importando--ou sendo coagidos a--tal discurso. Com o Brasil não foi diferente. Encarceramento em massa, criminalização da pobreza e criminalização racial, aliados a soluções higienistas para lidar com os "descontrolados da modernidade" (MISSE, 1999, p. 53), foram facilmente assimilados nacionalmente (VALOIS, 2017).

Deste modo é que Bauman (2005, p. 86-87) destaca a construção da ordem e do progresso pela criação desses "refugos humanos", aqueles contingentes populacionais imprestáveis à lógica do capitalismo, consumidores imperfeitos e figuras perigosas, que se multiplicam nos centros urbanos. No Brasil, a disseminação de refugos urbanos possui um exemplo emblemático em São Paulo, na região da Luz: a pejorativamente conhecida como "Cracolândia". Portanto, antes de diretamente tratar deste contexto sócioespacial, necessário que se entenda o que envolve a substância eleita como responsável por aquela condição: o "crack".

2 Crack, "nóia" e a epidemia midiática

Farmacologicamente, o "crack" e a cocaína são, conforme Hart (2014, p. 159-160), a mesma droga, sendo que a crença em serem substâncias diferentes decorre de um total desconhecimento da população sobre a sua composição; o que se altera é, segundo o neurocientista, a forma dos efeitos, por causa da rota de administração da droga.

Ignorando tal conhecimento e, portanto, acreditando ser uma "nova" droga, Reinarman e Levine (2004, p. 184-185) apontam que mídia e políticos falavam sobre o "crack", quando este surgiu, por volta da década de 80, como portador de poderes sem precedentes na história. Entretanto, era apenas uma nova forma de uma substância antiga, sendo novo apenas por duas maneiras: por ser uma maneira diferente de consumir cocaína e pelo preço barato (para se ter uma ideia, um grama de cocaína era vendida por cem dólares, enquanto cada pequena pedra de "crack" custava entre cinco e dez dólares), o que possibilitou sua venda para toda uma nova classe de pessoas no centro das cidades. "Em suma, o crack era uma inovação de marketing, não uma nova droga" (REINARMAN; LEVINE, 2004, p. 184). Contudo, a alegação de que o "crack" era uma nova droga, profundamente perigosa, permitia que a mídia escrevesse dramáticas histórias sobre ela, como se fosse uma espécie de bode expiatório para a criação de novas leis repressivas. Isso não se deu devido ao aumento no consumo da cocaína em si, mas por seu novo nicho de mercado: os mais pobres da cidade.

Assim, pelo temor deflagrado, ensejou a criação de novas leis, as quais auxiliaram ainda mais a criar um aprisionamento massivo nos Estados Unidos da América. De 1986 até 2000, o número de pessoas encarceradas aumentou a cada ano naquele país, fornecendo aos norte-americanos a maior taxa de encarceramento entre qualquer democracia moderna (REINARMAN; LEVINE, 2004, p. 182-183).

No Brasil, o aparecimento do "crack" e as primeiras apreensões por causa da substância se deram entre 1989 e 1991 (VEDOVA, 2014, p. 19), pouco depois de seu surgimento na América do Norte. Também aqui a mídia bombardeou constantemente os leitores e telespectadores com mitos sobre a questão do "crack", em especial a partir dos anos 2000. Propagava-se, desde tal época, uma noção de epidemia, o que fez inflar as demandas por enfrentamento. O "problema do crack", outrossim, foi construído demonizando os usuários e degradando vidas já vulnerabilizadas. Destaca-se, sobretudo, o processo de criação de identidades daqueles envolvidos com a droga a partir da vivência de usuários em "cenas" públicas. Os cenários serão locais sujos, onde seus residentes são violentos por causa da droga, alijados de quaisquer laços familiares que antes existiam em razão do "crack" e a espiral de dependência sempre a conduzir atitudes ilícitas para manter o vício (BASTOS; BERTONI, 2014, p. 13).

Não obstante, o tratamento sério e responsável se impõe...

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