Elementos para uma analise da formacao das politicas de bemestar na Gra-Bretanha a partir da Teoria da Reproducao Social/Elements for an analysis of welfare policy making in Great Britain through Social Reproduction Theory.

AutorAlencar, Thiago Romão de

Introducao

O pos-Segunda Guerra representa, ainda hoje, um periodo peculiar e excepcional no interior da historia do modo de producao capitalista. Os altos niveis de produtividade, o boom de uma sociedade de consumo de massas e a relativa estabilidade social e politica que caracterizaram os trinta anos "gloriosos" do capitalismo nos paises centrais sob o que se convencionou chamar de "Estado de bem-estar social" (BEHRING; BOSCHETTI, 2017) permanecem como um marco que norteia boa parte das atividades e manifestacoes da esquerda, principalmente em uma conjuntura de crise economica prolongada, austeridade, cortes de gastos sociais e esvaziamento de politicas publicas, como a que vivemos desde os anos 1980, tanto em paises centrais do capitalismo como em sua periferia.

No entanto, sempre importante lembrar, o estabelecimento dos Estados de bemestar social no centro do capitalismo foi resultado dos conflitos de classe em uma conjuntura especifica: na esfera interna, como parte da solucao para a crise capitalista e como resposta a organizacao da classe trabalhadora desde os anos 1930, no contexto da crise de 1929 e da resistencia ao nazifascismo; na esfera externa, como contraponto ao avanco politico-ideologico dos sovieticos, acompanhando o movimento mais geral das metamorfoses por que passava a forma-Estado na Europa ocidental do pos-Segunda Guerra. O boom do capitalismo central nos trinta anos seguintes deveu muito a esse rearranjo politico ancorado nas politicas macroeconomicas e nas medidas anticiclicas inspiradas na teoria do economista ingles John M. Keynes.

A defesa do pleno emprego e a extensao da previdencia e do bem-estar atraves de politicas sociais eram vistas como essenciais para a manutencao da coesao social, e tal visao foi consagrada no relatorio parlamentar do economista ingles William Beveridge, de 1942, cuja conclusao foi a necessidade de maior intervencao do Estado em areas sociais para salvar a economia britanica no periodo de guerra e apos o fim desta (PEREIRA, 2011). De acordo com o chamado "relatorio Beveridge", as novas politicas estatais de habitacao, educacao, emprego, saude e assistencia social deveriam ter por objetivo combater a "ignorancia, a sujeira, a enfermidade, a preguica e a miseria" (idem, p. 93) ao abarcar todos os cidadaos, e nao apenas os mais necessitados, universalizando, racionalizando e reformando um conjunto de politicas estabelecido desde a primeira decada do seculo XX. Coube aos trabalhistas recem-eleitos em 1945 implementarem tais medidas: em 1946 foi editada a Lei Nacional de Seguro, seguida da Lei Nacional de Assistencia, em 1948, reunindo no mesmo ministerio a nova regulamentacao e concessao do auxilio-doenca e desemprego, pensao aos aposentados (aos 65 anos para homens e 60 para mulheres), auxilio-maternidade, viuvez e funeral que, aliados ao NHS (1) e as politicas de emprego, educacao e habitacao desenvolvidas, deram novo sentido ao funcionamento do esquema de Seguridade Social.

No entanto, tal modelo na verdade se constituiu de contradicoes que por muito tempo permaneceram ignoradas pelas analises dessa quadra historica, apesar de representarem aspectos fundantes e estruturantes do sistema capitalista. O estudo da formacao das politicas sociais no periodo anterior a Primeira Guerra traz a luz tais especificidades. Neste artigo buscaremos, a partir da Teoria da Reproducao Social, trazer para

0 centro do debate a relacao entre essas contradicoes, a formacao das politicas sociais e a logica historica da acumulacao capitalista, mostrando, dessa forma, como o fenomeno do bem-estar social no pos-1945 se sustentou em exclusoes e definicoes especificas de cidadania e de trabalho produtivo que passaram pela ampliacao e consolidacao das politicas sociais em moldes keynesianos.

A Teoria da Reproducao Social e o desenvolvimento das relacoes capitalistas (2)

Ao analisarmos as particularidades das politicas sociais e do seguro social britanico desenvolvidos no comeco do seculo XX, salta aos olhos como essas politicas se alicercaram a partir das opressoes de genero e raca caracteristicas do capitalismo, geradoras de tensoes e hierarquias no interior da classe trabalhadora que, em ultima instancia, beneficiam o capital e seus detentores (mas nao apenas eles, como veremos) de diversas formas. Neste sentido, a ideia de reproducao social torna-se central para o desvelamento do sentido de tais tensoes. Uma definicao clara e simples do que e a reproducao social pode ser encontrada no trabalho Laslett e Brenner (1989, p. 382-383, traducao nossa): segundo as autoras,

feministas utilizam "reproducao social" para se referirem as atividades e atitudes, comportamentos e emocoes, responsabilidades e relacionamentos diretamente envolvidos na manutencao da vida diariamente e "inter-geracionalmente". (...) Reproducao social deve entao ser vista como incluindo varios tipos de trabalho--mental, manual e emocional--no sentido de prover o tipo de cuidado definido historicamente, socialmente e biologicamente, necessario para manter a vida existente e reproduzir a proxima geracao. E a organizacao da reproducao social se refere a uma variedade de instituicoes no interior das quais esse trabalho [de reproducao social] e realizado, as estrategias variaveis para cumprir tais tarefas, e as diferentes ideologias que moldam e ao mesmo tempo sao moldadas por ele. O trabalho de reproducao social, realizado essencialmente por mulheres, e fundamental e indispensavel para a economia capitalista ao reabastecer o mercado com sua energia vital e fonte de suas riquezas, a forca de trabalho, seja renovando as geracoes de individuos que um dia serao trabalhadores, seja recarregando a energia psicofisica e mantendo o padrao de vida dos trabalhadores ja existentes para um novo dia de trabalho. Mas, como bem identifica Fraser (2017, p. 22, traducao nossa), a existencia do trabalho de reproducao social--e sua relacao com os impulsos da economia capitalista--nao se da sem contradicoes:

qualquer forma de sociedade capitalista possui, de maneira profundamente arraigada, uma "tendencia de crise" ou "contradicao" reprodutiva-social. Por um lado, a reproducao social e a condicao da possibilidade de acumulacao sustentada de capital; por outro, a orientacao do capitalismo para a acumulacao ilimitada tende a desestabilizar o proprio processo de reproducao social no qual ela se apoia. Assim, um dos grandes problemas historicos e politicos com que a Teoria da Reproducao Social (TRS) se defronta sao as diversas formas em que tal contradicao reprodutiva-social se materializou a partir das disputas entre capital e trabalho (3) em suas diversas fracoes em diferentes contextos, alem de prestar especial atencao em como as forcas sociais em confronto lidaram com as modificacoes demandadas pelo capitalismo e sua relacao com o trabalho de reproducao. Vejamos como isso se deu na pratica, tomando por norte as sociedades do centro do capitalismo.

Na economia pre-industrial, cuja producao era basicamente domestica, "lar e comercio, reproducao social e producao, homens e mulheres, criancas e adultos, se localizavam no mesmo mundo de experiencia cotidiana" (LASLETT; BRENNER, 1989, p. 386, traducao nossa). O avancar e a disseminacao da Revolucao Industrial aprofundou a retirada, dos trabalhadores, dos seus meios de producao e subsistencia, ao mesmo tempo em que, consequentemente, lhes roubou o controle sobre o proprio processo de trabalho, agora confinado entre as paredes das modernas fabricas e regulado pelo relogio do patio em seu novo ambiente de trabalho. Como afirmam Laslett e Brenner (1989, p. 389, traducao nossa), "ao perder o controle sobre a propriedade produtiva e sobre o processo de trabalho para os seus patroes capitalistas, as familias perderam sua capacidade de coordenar tarefas produtivas e reprodutivas". A perda de tal capacidade significou a separacao irrevogavel entre o trabalho de reproducao social e o que passou a ser conhecido como "trabalho produtivo", realizado de forma independente deste nas fabricas e minas. Ao mesmo tempo, a preservacao e a reproducao da forca de trabalho cada vez mais se vinculava as relacoes de mercado e se tornava ainda mais mediada pela forma-salario.

Essa separacao tornou mais visivel ainda as contradicoes que se instalariam entre o que consideramos aqui a esfera domestica e a esfera industrial da producao capitalista. Comparando as sociedades industriais com suas predecessoras, E. P. Thompson (1998, p. 300), em um importante artigo, concluiu que "sociedades industriais maduras de todos os tipos sao marcadas pela administracao do tempo e por uma clara demarcacao entre o 'trabalho' e a 'vida'". Neste processo, a esfera da "vida" passou a ser identificada de forma isolada, como uma esfera particular e privada localizada no lar, apartada da esfera publica do trabalho remunerado. A reestruturacao dessas esferas, ocorrida ao longo do seculo XIX, correspondeu igualmente a uma reorganizacao da relacao entre os generos. Como explica Fraser (2017, p. 23, traducao nossa), "isolando o trabalho reprodutivo do universo maior das atividades humanas, onde o trabalho das mulheres possuia anteriormente um lugar reconhecido, relegou-se este a uma 'esfera domestica' recentemente estabelecida, onde sua importancia social foi obscurecida".

No entanto, em um contexto em que trabalhar significava longas e exaustivas sob condicoes insalubres vastamente documentadas e salarios baixissimos onde, em um primeiro momento, mulheres e criancas eram inclusive preferidas por seu trabalho tratado como mais barato e por sua pretensa docilidade, os imperativos de producao e de reproducao social entraram em contradicao direta, posto que a exploracao sobre criancas e mulheres resultou numa

crise em ao menos dois niveis: uma crise de reproducao social entre os pobres e as classes trabalhadoras, cujas capacidades de sustento e recuperacao foram exploradas ate um ponto de ruptura, e um panico moral entre as classes...

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