Enfrentamento a violencia obstetrica: contribuicoes do movimento de mulheres negras brasileiras/Confronting obstetric violence: contributions from the black Brazilian women's movement.

Autordos Santos, Jussara Francisca de Assis

Introdução

As reflexões trazidas neste artigo resultam de parte da tese de doutorado intitulada Enfrentamento à violência obstétrica contra mulheres negras numa maternidade pública municipal do Rio de Janeiro na perspectiva de gestoras (es) e profissionais de saúde. Para tanto, a pesquisa qualitativa, baseada em estudo de caso, contou como método de análise a interpretação de sentidos (GOMES, 2016) em torno do conceito de violência obstétrica atrelado à dimensão racial.

Foram realizadas 15 entrevistas semiestruturadas entre gestoras e profissionais de saúde das áreas de Serviço Social, enfermagem e medicina (1). A escolha da maternidade pesquisada teve como um dos critérios o fato de estar localizada numa área programática (AP) cujo índice de morte materna no ano de 2016 foi o mais elevado do município do Rio de Janeiro. A partir dos sentidos que foram relacionados ao objeto de estudo, atribuíramse ideias associadas ao entendimento entre violência obstétrica e viés racial. Identificou-se que a maioria das/os entrevistadas/os revelou que mulheres negras e brancas seriam atendidas igualmente e, caso houvesse algum tipo de discriminação, essa se daria pela dimensão meramente socioeconômica.

Ressalta-se que o lócus do estudo é caracterizado por se situar numa área periférica da cidade cuja população prioritária é negra. A superposição da classe em detrimento da raça/cor é comum no Brasil, onde a crença na democracia racial tende a escamotear as profundas desigualdades e discriminações com as quais grande parte da população não branca é obrigada a conviver.

Descortinar o mito da democracia racial a partir da realidade sócio-histórica da população negra e, sobretudo, das mulheres pretas, pardas e indígenas tem se configurado como pauta política do movimento de mulheres negras no Brasil. O objetivo deste artigo é ressaltar a necessidade de apropriação das contribuições do movimento de mulheres negras por parte de gestoras/es e profissionais de saúde para a efetivação da equidade racial no que se refere à assistência ao parto.

A pesquisa de doutorado procurou identificar ações institucionais e individuais que pudessem considerar a articulação entre violência obstétrica e dimensão racial, tendo em vista a necessidade de pontuar as especificidades das mulheres no que tange a suas localizações de classe, raça/cor e gênero. Neste contexto, verifica-se que a violência obstétrica tem impactado, sobremaneira, a vida de mulheres pretas e pardas brasileiras, demonstrando como a interseccionalidade de opressões é capaz de se manifestar e se materializar no período gravídico puerperal, colocando em risco O direito à vida.

A violência obstétrica é tida como uma violência de gênero. Tanto no Brasil quanto em outros países da América Latina o termo é utilizado para demonstrar as formas de desrespeito às mulheres grávidas, parturientes e puérperas ocorridas no âmbito das instituições de saúde, sejam elas públicas ou privadas. Com o objetivo de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil, foi instaurada, entre 2011 e 2012, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), do Senado Federal. Em 2013, o relatório final da referida CPMI definiu como atos característicos de violência obstétrica: a negligência, a violência verbal (grosserias, ameaças e humilhações intencionais), violência física (incluindo a não utilização de analgesia quando necessário e a realização de cirurgias desnecessárias e indesejadas) (REDE PARTO DO PRINCÍPIO, 2012).

O fenômeno violência obstétrica promoveu e promove discussões e sentimentos profundos porque impacta idealizações em torno do gestar e parir, colocando em risco o direito à vida das mulheres e de seus bebês. Contraditoriamente, mulheres e, fundamentalmente, mulheres pretas e pardas têm suas humanidades colocadas em xeque quando são desconsideradas suas histórias, opiniões, sentimentos e direitos ao serem alvos da violência obstétrica. O verbo enfrentar guarda os seguintes significados: pôr ou colocar (-se) diante de; defrontar; encarar sem medo (ENFRENTAR, 2020).

Por um lado, cabe o questionamento quanto à capacidade de enfrentar a violência obstétrica, que ganha potencialidade com a dimensão racial por parte de gestoras/es e profissionais de saúde. Será que este grupo tem incorporado as especificidades das mulheres negras em suas formas de atuação profissional? Por outro lado, encarar sem medo tem sido o objetivo do movimento de mulheres negras quando se trata de defesa à vida e ao bem viver. Historicamente, as lutas políticas travadas pelas negras têm pautado o direito à saúde reprodutiva e sexual. Em que medida tais contribuições têm estado presentes na assistência obstétrica às mulheres negras no Brasil, sobretudo no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)?

A articulação de mulheres negras enquanto movimento social tem sido fundamental para o enfrentamento das desigualdades com as quais grande parte das mulheres deste grupo se depara nos serviços de saúde. A história das mulheres negras no Brasil é marcada por um processo violento que insiste em permanecer na atualidade. Desde a travessia transatlântica, no interior dos tumbeiros e navios negreiros, as mulheres negras são alvo de violência por terem sido, sumariamente, separadas de seus filhos e violentadas sexualmente, tendo seus partos desconsiderados. De acordo com Almeida (2014), estas raízes remontam à emergência do Estado moderno e colonial, e suas ideologias e práticas discriminatórias são reconfiguradas ao longo do tempo a partir de uma perspectiva capitalista.

Estudo de base nacional realizado por Leal et al. (2017) revela que puérperas de cor preta possuíram maior risco de terem um pré-natal inadequado ao se comparar às puérperas brancas. Além disso, foi constatado também que para as mulheres pretas há maior incidência de falta de vinculação à maternidade, ausência de acompanhante, maior peregrinação para o parto e menos anestesia local para episiotomia. A mesma pesquisa revelou que as puérperas declaradas de cor parda também tiveram maior risco de terem um pré-natal inadequado e falta de acompanhante quando comparadas às brancas.

Ao pesquisar os sentidos atribuídos ao enfrentamento à violência obstétrica contra mulheres negras, verificou-se que o conceito de igualdade de condições, numa perspectiva liberal, colocava as mulheres atendidas naquela maternidade dentro do mesmo universo, ou seja, as pautas relativas às especificidades das mulheres negras, tais como suas condições de trabalho, moradia, saúde, território, religião etc., não faziam parte da concepção de saúde pela qual grande parte das/os gestoras/es e profissionais entrevistadas/os se orientava. Estes aspectos têm sido questionados pelas mulheres negras que contribuem, epistemológica e politicamente, para efetivação do princípio de equidade, tida como uma das diretrizes do SUS.

O movimento de mulheres negras brasileiras e as suas contribuições para a política de saúde

A concepção de direitos sociais e humanos parece não estar concretizada para a população negra no Brasil. Neste contexto, a resistência das mulheres negras sempre esteve presente para a garantia à vida. A articulação feminina negra não é recente. Pode-se considerar que desde a travessia do Continente Africano para as Américas existiram muitas formas de resistência. Werneck (2009, p. 77), ao discorrer sobre a diáspora africana e o papel fundamental das mulheres negras neste processo, afirma que:

Na formação e expansão desta diáspora, as articulações empreendidas tinham e têm como âncora principal a luta contra a violência do aniquilamento-racista, heterossexista e eurocêntrica-com vistas a garantir nossa participação ativa no agenciamento das condições de vida para nós mesmas e para o grupo maior a que nos vinculamos. A autora afirma que se não fosse a resistência e o imperativo de sobrevivência ao cenário violento possibilitado pela espoliação do povo negro africano talvez não existissem as mulheres negras. A resistência é parte intrínseca à identidade negra feminina, já que as experiências de desfavorecimento social, político, económico e cultural vêm fazendo parte de seu cotidiano desde a travessia transatlântica. Sendo assim, a categoria mulher negra é histórica e a luta contra as desigualdades que a permeia é secular.

Este fato pode ser exemplificado pela duração e resistência de mitos que atravessaram o Atlântico sob condições desumanas, contestando o terror racial, a violência e as investidas de conversão euro-cristã. Nanã, Iemanjá, Iansã, Oxum e Obá são algumas das divindades tradicionais de resistência feminina negra existente desde...

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