Entrevista com o ministro Carlos Ayres Britto
Autor | Fernando de Castro Fontainha/Rafael Mafei Rabelo Queiroz/Fábio Ferraz de Almeida |
Páginas | 27-140 |
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CARLOS AYRES BRITTO
Apresentação pessoal e dos membros de sua família; infância
e formação religiosa; educação e estudos filosóficos
FF Nós estamos em Brasília, no escritório do ministro Car-
los Ayres Britto, e esse é mais um ato de pesquisa do projeto “O
Supremo por seus ministros: a história oral do STF nos 25 anos
da Constituição de 1988 (1988-2013)”. Presentes: eu mesmo,
professor Fernando Fontainha, da FGV Direito Rio; Rafael Ma-
fei, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo; Fábio Ferraz de Almeida, assistente de pesquisa da FGV
Direito Rio; Leonardo, analista de áudio e vídeo, que é quem ope-
ra a câmera e a captação de áudio; e, evidentemente, nosso en-
trevistado, o ministro Carlos Ayres Britto. Ministro, eu queria
começar a entrevista pedindo ao senhor que nos diga seu nome
completo, sua data e local de nascimento e o nome e profi ssão de
seus pais, por favor.
AB Meu nome é quilométrico – meu pai não observava mui-
to o princípio da proporcionalidade, embora fosse juiz –, Car-
los Augusto Ayres de Freitas Britto. Ayres com Y e Britto com
o T dobrado. Meu pai se chamava João Fernandes de Britto,
nasceu em 1910, viveu 87 anos, foi juiz e poeta, juiz de carrei-
ra, e minha mãe, Dalva Ayres de Freitas Britto, baiana, profes-
sora de curso médio, jornalista, pianista, violinista e cantora.
Meu pai gostava de poesia, e minha mãe, de música. Ele, muito
responsável, muito estudioso, memória prodigiosa, e ela, mais
afável, mais amena, doce e mais descontraída, sempre de bom
humor e de bem com a vida. Meu pai também era de bem com a
vida, porém, um pouco mais contido.
FF Ministro, eu ia perguntar como o senhor descreveria a
casa onde o senhor passou sua infância: como é que era, quem
frequentava, outros membros da família...
AB Em verdade, foram várias casas, porque meu pai, como
juiz de carreira, era designado para as diversas comarcas do
28 HISTÓRIA ORAL DO SUPREMO VOLUME 19
interior de Sergipe. Formado na Bahia, onde conheceu minha
mãe, formado em direito. Lá, conheceu minha mãe – minha
mãe, baiana; ele, sergipano –, os dois se casaram – ela, com de-
zoito anos; ele, com vinte e cinco –, e foram morar em Sergipe.
Ele fez concurso para juiz, fez três concursos e foi aprovado em
primeiro lugar nos três concursos, mas àquela época havia a
lista tríplice para o governador escolher, mesmo entre os con-
cursados, e meu pai era muito novo – ele tinha vinte e poucos
anos – e era sempre preterido. Até que, na terceira vez, ele foi
nomeado. Já tinha uns 25 anos. E meu pai tinha uma virtude:
ele morava na comarca. Então, por isso que eu disse que tive
várias casas: em cada comarca, uma casa, casa de aluguel. Eu
morei em Gararu, morei em Japaratuba, morei em Propriá,
antes de morar em Aracaju. Agora, sempre em casa de interior
– salvo Aracaju –, casa de interior, casa grande, avarandada,
com quintais. Meu pai gostava de criar animais, coelhos, preás
e cutias; os saguis, aqueles símios pequenininhos, apareciam
e ele alimentava. Os quintais fl oridos, arborizados, muitas ba-
naneiras. Eu até uma vez escrevi: “Verdes lembranças que me
chegam aos cachos”, referentemente às bananeiras. E a casa
cheia das partes e dos advogados. Porque meu pai era um juiz
solícito, acessível – ele abria a casa a partir das oito horas, nove
da manhã até a noite, e às vezes as partes e os advogados al-
moçavam conosco. Era um típico juiz de interior, que era juiz
e consultor jurídico ao mesmo tempo. Era um conciliador por
natureza, por vocação. E minha mãe, ali, ia fazer cafezinho,
preparar uns salgadinhos, um doce, um bolo, uma torta. E nos-
sa vida no interior transcorreu assim, eu diria amenamente,
com essa abertura para as coisas simples, naturais da vida, sem
maiores poses ou vaidades. Meu pai era um homem extrema-
mente simples, e minha mãe, também. Eram educados, muito
cordiais. Meu pai tinha um pouquinho de temperamento alte-
rado. Vez por outra ele se tornava um fi o desencapado. Mas por
pouco tempo. Depois ele se arrependia e tal. E minha mãe, não,
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CARLOS AYRES BRITTO
era a paciência em pessoa, a solicitude em pessoa. Então eu
conheci vários interiores, aquele povo simples do interior. Por
exemplo, em Japaratuba, eu me lembro muito que, dia de do-
mingo, havia uma banda, uma bandinha de cinco, seis tocado-
res de pífano – que outros, lá, chamavam pífaro –, e os folgue-
dos do interior, as festinhas nas procissões. Em todo interior
havia sempre uma matriz. A primeira igreja sempre se chama
matriz. Não é à toa, esse nome matriz. É a matriz defronte de
uma praça. Era uma característica do interior: a praça princi-
pal sempre defronte de uma igreja. Essas coisas marcam a gen-
te. Uma vez eu escrevi, também, poeticamente, não me lembro
exatamente a forma dos versos, mas me lembro do conteúdo,
em que eu dizia o seguinte: “que em toda praça do interior há
uma igreja defronte, o povo a se postar na praça para contem-
plar a igreja e Deus a se postar na igreja para contemplar a pra-
ça”. Era uma vida interiorana, que ia me dando elementos para
a poesia. Até hoje eu crio poeticamente a partir dessa minha
vivência interiorana.
FF Já tivemos duas até agora.
AB Já duas.
FF Dois belos versos até agora.
RM Ministro, já que tocamos tangencialmente no assunto,
gostaríamos que o senhor falasse sobre sua educação religiosa
ou formação religiosa, a religião da sua família, se isso foi pre-
sente, importante.
AB Muito importante. Meu pai era católico, uma irmã era
freira, um primo foi bispo – Dom Juvêncio Britto, bispo de Ga-
ranhuns, por exemplo.
RM Desculpe. Primo do seu pai?
AB Primo do meu pai. Minha mãe, baiana...
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