Esboço histórico

AutorLucas Naif Caluri
Páginas19-32

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A violação de direito ou lesão a um determinado bem da vida gera para a parte ofendida a possibilidade de recorrer ao órgão judiciário competente para a satisfação de sua pretensão resistida, por meio de uma lide. A lide, portanto, é o primeiro recurso de que se vale o interessado para a defesa do que é seu.

Bem por isso, a tendência natural do ser humano é reagir contra tudo que lhe desagrada. No que tange a julgamento, sempre se insurge contra uma decisão judicial única, vez que, envolvido nesse sentimento de inconformismo, culmina por acreditar na possibilidade de erro ou má-fé ou ainda em interpretação diversa do julgador sobre determinada situação jurídica, de sorte a abrir-se uma nova oportunidade de rediscutir a questão já assentada em uma decisão ou, mais tecnicamente, em uma sentença.

Assim sendo, afastando-se da conceituação mais abrangente no sentido de ser o recurso “todo meio empregado pela parte litigante a fim de defender o seu direito através das medidas judiciais cabíveis” (ação, contestação, exceção, reconvenção — pedido contraposto — medidas preventivas), na “acepção técnica e restrita, recurso é o meio de provocar, na mesma ou na superior instância, a reforma ou a modificação de uma sentença desfavorável”5.

A noção e a extensão desse inconformismo, porém, sofreram variações ao passar dos séculos.

Uma decisão que não esteja sujeita a reexame, que não possa ser apreciada por outrem, constitui uma mal, por que é confiar-se demais na pessoa que a proferiu, olvidando-se a precariedade dos conhecimentos humanos, o erro que é próprio do indivíduo, já não se falando no poder enorme confiado a quem proferiu, facilitando-se, dessarte, seu arbítrio ou desmando6.

Longe de servir apenas aos anseios das partes, os recursos estão diretamente ligados ao interesse público em que a prestação jurisdicional se faça de forma justa e adequada.7

Nos primórdios, as decisões eram imunes a qualquer ato impugnativo. Elas representavam a vontade infalível de um soberano ou a resolução inatacável do

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órgão prolator. Eram proferidas pelo próprio povo ou resultavam de uma jurisdição de fonte divina. Ninguém ousava atacá-las ou criticá-las.8

Na Antiguidade, os legisladores notaram a possibilidade de erro judiciário e criaram meios de debelá-lo. Os egípcios tinham tribunais superiores com poder de reexaminar os casos julgados por magistrados singulares. Tinham até uma Corte Suprema, integrada por trinta membros, com poder de apreciar recursos em geral, cuja escolha era levada a cabo por Tebas, Mênfis e Heliópolis.

Luiz Carlos de Azevedo enfatiza dizendo que mais caracteristicamente se denota o direito de recorrer na legislação oriunda de Moisés. Menciona a existência de uma jurisdição superior, cuja finalidade era afastar as influências da localidade nas decisões adotadas. Essa jurisdição denominava-se Sinédrio, órgão colegiado composto de setenta juízes escolhidos dentre os anciões de Israel e que, além de outras atribuições, conhecia das causas decididas por instâncias inferiores.9

Como se conhece na atualidade, o instituto recursal surgiu, no Direito Romano, na figura da appellatio, quando da cognitio extraordinaria. Naquela época, na fase do Império, o iudex era o funcionário do Estado, na qualidade de delegado responsável da soberania estatal. A appellatio constituía-se no recurso interposto contra suas decisões e era dirigida ao Imperador. A essa autoridade máxima cabia o reexame da matéria e a reforma da decisão.

Havia ação autônoma com o objetivo de neutralizar os efeitos da sentença do árbitro. Mas recurso, na feição atual de levar o caso julgado por juiz inferior ao reexame de órgão judicial superior, só surgiu com a appellatio do processo extraordinário, quando estava estruturado um sistema judiciário, com magistrados investidos do poder de julgar demandas cíveis e criminais. Primeiramente, a appellatio era dirigida ao Imperador e por ele julgada, pois se tratava da autoridade máxima a quem cabia o reexame da matéria e a reforma da decisão. Mais tarde, o julgamento desse recurso foi atribuído aos magistrados.

Com a derrocada do Império Romano e num determinado período da Idade Média, em razão da ausência de um ordenamento jurídico central, próprio do sistema feudal, prevaleceu a irrecorribilidade das decisões. Nesse contexto, as decisões dos senhores feudais — reconhecidamente autoridades máximas de seus territórios — não eram submetidas a nenhuma forma de reexame, porque acima do senhor feudal, que era o juiz, nenhuma autoridade existia, e mesmo que os recursos fossem recepcionados, eram tidos como praticamente inúteis e, até, perigosos para a parte recorrente, que estava flagrantemente enfrentando o prestígio e a forma dos prolatores das decisões.

Posteriormente, observa-se, então, o surgimento de diversos órgãos judiciais. Muitos dos antigos senhores feudais tornaram-se juízes locais, cujo cargo, comprado,

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transmitia-se aos herdeiros. Nesse momento, a atividade judicante labora sob o signo do mercantilismo, apresenta-se desorganizada, gerando forte descrédito junto à população. Em razão dessa falta de credibilidade, já vigia, àquela época, a recorribilidade de todas e quaisquer decisões judiciais em suas mais variadas modalidades recursais.

Quando da Revolução Francesa, ocorrida em 1789, toda situação na concepção do Poder Judiciário foi modificada, notadamente com a supressão dos cargos hereditários e com a criação de tribunais de diferentes jurisdições.

No cenário processual, no entanto, percebe-se como sendo uma das maiores conquistas da Revolução a defesa da existência de instâncias recursais, o que se concretizou com o surgimento do Princípio Constitucional do Duplo Grau de Jurisdição.

No processo, portanto, vige aludido princípio, no sentido da possibilidade de as decisões de primeira instância serem revistas por uma instância de grau superior. Não fosse assim e estaríamos não num estado de direito democrático, mas de exceção, transformando-se os juízes de direito em ditadores, senhores de suas próprias vontades, pensamentos e verdades, distanciando-se da nobre missão de dizer o direito, por meio da aplicação da Justiça.

Liebman relatou que por longo tempo, no Direito romano e no Direito medieval, as duas categorias de vícios, de atividade e de julgamento, foram tidas como claramente distintas: os errores in procedendo provocavam a invalidade e, portanto, a ineficácia da sentença, como se esta nem sequer tivesse sido pronunciada, e nenhum remédio era necessário para fazer declarar a certeza da existência de uma sentença juridicamente inválida. Sententia nulla queria dizer nenhuma sentença (nec ulla sententia). Pelo contrário, os erros do julgamento não infirmavam a validade da sentença, mas para tornar possível a eliminação deles surgiu o apelo, com o qual se obtinha uma nova pronúncia sobre aquilo que já tinha sido objeto de julgamento.10

A recorribilidade das decisões foi restabelecida na Idade Moderna. Com o advento do Estado — e, por via de consequência, de uma ordem jurídica centralizada ou tendente à centralização — impôs-se a submissão do poder dos senhores feudais ao dos respectivos soberanos.

Em Atenas, a assembleia do patriciado constituía-se em órgão judicante, o Tribunal dos Heliastas, composto de 5 mil membros divididos em seções de quinhentos juízes, além de julgar originariamente os casos que lhe eram apresentados, tinha competência recursal.11

No processo germânico — de acentuada tonalidade religiosa — Eduardo Couture doutrina que “o fenômeno dos recursos nem se concebe, porque a

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sentença é uma expressão da divindade e participa do caráter infalível desta”.12

Os julgamentos dependiam dos chamados juízos de Deus, as ordálias, que consistiam em provas arriscadas ou duelos. A assembleia velava pelo cumprimento das regras de procedimento e proclamava o resultado da prova ou do duelo.

No Direito Canônico, que evoluiu a partir do Direito romano e, paralelamente, do Direito germânico, perduraram os recursos do Direito romano. E, tanto por influência da Igreja como pelo fortalecimento do poder dos reis, generalizou-se em toda a Europa o emprego da apelação ao monarca contra os abusos dos senhores feudais ou dos magistrados locais. Multiplicaram-se pouco a pouco as vias impugnativas, a ponto de o processo civil se tornar tormentoso e quase infindável e as custas aumentarem, enriquecendo os juízes e tornando os cargos judiciários objeto de comércio.13

Miguel José Nader esclarece que múltiplos recursos admitiam as leis portuguesas, e essa tradição manteve-se no Brasil, com o advento do Código de Processo Civil de 1939, cujos redatores declararam o propósito de conformar as normas processuais brasileiras com a moderna doutrina. Nesse contexto, foi deixado um cipoal de recursos.14

Comentando o sistema recursal no Código de Processo Civil, Vicente Greco Filho relata que em Portugal, à época de Afonso III, admitia-se a apelação para as sentenças finais e para as decisões interlocutórias, na mesma linha do Direito Romano precedente à invasão bárbara. Já Afonso IV, em virtude do abuso da atividade recursal e também por influência do Direito Romano Justinianeu (de Roma do Oriente, a partir de 526 d.C.), restringiu a apelação para as sentenças definitivas, salvo algumas exceções.15

O atual Código de Processo Civil, com as recentes alterações processuais, busca reduzir o número de recursos e simplificar o manejo. Várias legislações modificaram dispositivos do Código de Processo Civil com o propósito primordial de acelerar o andamento dos recursos e buscar a sempre almejada justiça.

O modelo bíblico de justiça humana foi de Salomão, que muito agradou a Deus, pois, ao invés de lhe pedir riquezas, poder, honra e glória, só lhe pediu...

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