Etica e a dimensao (des)constituinte da desobediencia civil: uma leitura a partir de Michel Foucault/Ethics and the (dis)constituent dimension of civil disobedience: a reading based on Michel Foucault.

Autorde Moura Costa Matos, Andityas Soares

Introducao (1)

Segundo o tradicional Dicionario de Politica organizado por Norberto Bobbio, a desobediencia civil pode ser compreendida como "uma forma particular de desobediencia, na medida em que e executada com o fim imediato de mostrar publicamente a injustica da lei, e com o fim mediato de induzir o legislador a muda-la" (BOBBIO, 1998, p. 335). Tal definicao traz um elemento crucial para se compreender a relacao entre desobediencia civil e o quadro juridico constituido: diferentemente de uma mera contestacao ou protesto, a desobediencia civil e marcada pelo descumprimento da lei, com o objetivo de alterar o ordenamento juridico, em parte ou na integra. Trata-se, portanto, de uma acao que tenta realocar o poder constituinte na dimensao da sociedade civil, despindo a lei de sua aura simbolica e tornando evidente que sua eficacia depende, em ultima instancia, de sua observancia pelos cidadaos. E e exatamente devido a essa instauracao articulada do conflito, que escancara a natureza agonistica do politico e reativa a disputa acerca da normatividade que vinculara (ou nao) as condutas de determinada comunidade, que a desobediencia civil deve ser compreendida como um ato de (des)constituicao, que inclusive pode se dirigir revolucionariamente a transformacao do ordenamento politico-juridico em sua integralidade (como, por exemplo, na India de Gandhi), ao contrario do que consta do timido conceito liberal apresentado por Bobbio, no qual a desobediencia civil e apenas um mecanismo de autocorrecao pontual de um ordenamento ja dado.

Com efeito, esse carater (des)constituinte originario da desobediencia civil tem sido invisibilizado na medida em que, com o intuito de legitimar sua pratica, a teoria juridica a desloca do limiar politico-juridico para o interior da ordem constituida, o que por vezes acaba por turvar seu potencial revolucionario. Por esse motivo, e crucial revisitar algumas reflexoes acerca da desobediencia civil, com o objetivo de compreende-la nao enquanto mera expressao interna e corretiva do poder constituido, mas antes como pratica originaria de uma nova ordem politico-social, potencialmente revolucionaria e, portanto, (des)constituinte.

Nesse processo, algo que se destaca nas experiencias historicas de desobediencia civil e a preocupacao interna aos movimentos de carater etico, nao apenas na dimensao dos valores que fundamentavam e orientavam suas posicoes, mas especialmente nos exercicios corporais praticados pelos seus integrantes como forma de preparo de si e constituicao de uma subjetividade vinculada aos objetivos e principios pelos quais se lutava.

Para analisar essa dimensao pouco explorada da desobediencia civil, seguimos as pistas lancadas por Frederic Gros em seu livro (Des)obeir, no qual o autor sugere que o ato da desobediencia seja compreendido como atitude critica nos termos tracados por Michel Foucault, ou seja, como uma insubordinacao refletida voltada ao desassujeitamento e que exige um processo pratico de subjetivacao etica. Com isso, propomos entao que a natureza (des)constituinte da desobediencia civil torna-se clara quando focamos em sua dimensao etopoietica, visto que o estabelecimento de uma nova subjetividade e fundamental para se pensar uma nova ordenacao social.

Assim, a primeira parte do trabalho contara com um breve levantamento das reflexoes teoricas acerca da desobediencia civil, com o objetivo de se apontar os problemas de algumas dessas abordagens classicas. Em seguida, buscaremos na obra de Michel Foucault uma caixa de ferramentas para se pensar a desobediencia civil, com destaque para suas reflexoes tardias acerca das implicacoes entre etica e politica, especialmente aquelas que aparecem ao final do curso de 1984, O governo de si e dos outros II: a coragem da verdade. Por fim, esclarecida a matriz filosofica a partir da qual sustentamos nossa hipotese analitica, voltaremos aos movimentos historicos de desobediencia civil, salientando a importancia de seus exercicios eticos para a acao (des)constituinte.

1) Desobediencia civil: as descontinuidades do conceito

A ideia de desobediencia civil (2) se liga ao classico ensaio de Henry David Thoreau Civil disobedience, de 1849, originalmente intitulado Resistance to civil government, no qual o escritor discorre sobre os motivos de nao pagar os impostos devidos ao Estado que seriam direcionados para financiar a guerra expansionista contra o Mexico. Porem, mais do que um mero exercicio teorico-argumentativo, essa obra e um protesto politico alinhado a propria pratica do autor, que chegou a ser preso pelos atos de resistencia que nao apenas professava, mas tambem materializava por meio de suas acoes.

Segundo Rafaelle Laudani, e importante que esse texto de Thoreau seja lido como uma tentativa de proteger o espirito original da Declaracao de Independencia Norte-Americana no contexto pos-revolucionario (2012, p. 121), configurando uma "reformulacao da teoria moderna do direito de resistencia baseada em uma concepcao concreta da politica e, de maneira mais especifica, em uma interpretacao particular da relacao entre o individuo e as instituicoes politicas" (LAUDANI, 2012, p. 124).

Todavia, se com Thoreau a desobediencia civil era pensada no ambito puramente individual e diretamente relacionada a objecao de consciencia, no seu desenrolar historico o conceito passou a se ligar cada vez mais a acoes de dimensao coletiva. Tanto que, no seculo XX, tal pratica passa a ser associada a nocao de acao direta, a negativa de participacao politica que se daria simplesmente por meio do voto--e que implica a representacao do individuo por uma autoridade externa--, convertendo grupos organizados em protagonistas das mudancas que se deseja alcancar, e se colocando como uma alternativa ao reformismo proposto pela via instrumental dos partidos politicos (LAUDANI, 2012, pp. 128-129). Tal e a vertente inaugurada por Mahatma Gandhi na luta pela independencia indiana, e continuada por Martin Luther King na batalha pelo fim do segregacionismo e em prol do reconhecimento dos direitos civis das pessoas negras nos Estados Unidos. Em ambos os casos, a coletividade, a publicidade, a ilegalidade e o carater pacifico da desobediencia civil tornam-se elementos essenciais do conceito (3).

Na medida em que a desobediencia civil e redefinida, passando de um mero ato individual de objecao de consciencia para uma pratica coletiva calcada em valores compartilhados, ela e percebida a partir de uma concepcao de pertencimento comum em um contexto social plural (LAUDANI, 2012, pp. 145-146). Configura-se entao uma especie de pratica em que, por meio da instauracao de conflitos capazes de evidenciar a arbitrariedade de certas discriminacoes, uma minoria constitui sua subjetividade em torno de uma identidade. Tal se da com o objetivo de converte-la em uma politica de reconhecimento para assim redefinir os limites de sentido relativos ao pertencimento a uma comunidade politica democratica. Dessa forma, a principal estrategia da desobediencia civil passa a ser o recurso a valores fundamentais, naturais e nao positivados para questionar a lei injusta.

Por conseguinte, uma das principais caracteristicas da desobediencia civil e que ela toma como base para a acao principios socialmente valorizados, principios esses que seriam, em tese, fundadores do ordenamento politico-juridico. E e exatamente por isso que, ainda que formalmente ilegal, ela tem a pretensao de ser considerada legitima, consubstanciando-se como um dever cidadao a ser reconhecido pelo maior numero possivel de pessoas--inclusive pelas autoridades publicas--, nao se confundindo com a mera negacao individualista da lei ou com a desobediencia criminal.

O problema que se coloca e que, uma vez que a justificativa em tais bases axiologicas encontra respaldo nos fundamentos positivados pelo Estado Democratico de Direito, nao demorou muito para que a desobediencia civil passasse ser analisada pelas tradicoes politicas liberal e constitucionalista como um instrumento de autocontrole, um mecanismo estrutural de correcao da ordem politico-juridica, a ser usado em situacoes especificas. Tratar-se-ia de um instrumento de reajuste das engrenagens proprias de um sistema que se revela desvirtuado dos seus principios fundamentais, com o intuito de corrigir o poder constituido e assim evitar que ele se transforme em mecanismo de opressao. (4)

Em outras palavras, a desobediencia civil passou a ser pensada como uma pratica cidada legitima de interpretacao da lei (DWORKIN, 1978), porem, que so teria lugar em uma sociedade quase justa, bem-ordenada em sua maior parte (RAWLS, 2000, p. 402), de modo que para a pratica da desobediencia civil seria necessario que os cidadaos reconhecessem e aceitassem a legitimidade da Constituicao (RAWLS, 2000, p. 403). Com isso, a desobediencia civil deixa de ser uma forma de despotencializacao do poder governamental e de questionamento de sua forma geral instituida.

E inegavel que tal perspectiva teve um importante papel legitimador da desobediencia civil no discurso publico, na medida em que a diferencia da mera acao criminosa. (5) No entanto, ao inscreve-la nos limites do poder constituido, os autores liberais e constitucionalistas acabam por negar seu potencial de mudanca radical ao aparta-la dos atos de carater revolucionario, modificando estruturalmente seu sentido original (LAUDANI, 2012, p. 141). Em outras palavras, ao ser analisada dentro de criterios aceitaveis de estabilizacao do poder constituido, seu carater emancipatorio e reduzido (MATOS, 2016, p. 54).

E preciso, portanto, repensar a desobediencia civil nao simplesmente como estrategia de pressao politica, mas enquanto "mecanismo politico-juridico constituinte de novas possibilidades de vivencia social" (MATOS, 2016, p. 65), dotado da forca (des)constituinte necessaria "para se abater o poder constituido e substitui-lo por um poder constituinte continuo e permanente" (MATOS, 2016, p. 75). Em outras palavras, em um contexto...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT