Filhos, familia e ambientes honestos: genero, sexualidade e (des)criminalizacao do consumo de drogas/Children, family and honest environments: gender, sexuality and (de)criminalization of drug possession.

Autorde Mello, Breno Marques
  1. Introducao

    Uma caracteristica fundante da dogmatica penal moderna encontra-se no principio da legalidade: "nao ha crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem previa cominacao legal". Deste mandamento principiologico, destaca-se a obrigatoriedade nao somente da adocao de leis objetivas definidoras das condutas que serao criminalizadas por determinado Estado, como tambem o dever de estrito cumprimento do texto designado pelas legislacoes de carater penal no exercicio do jus puniendi estatal. No entanto, as contribuicoes da virada linguistica servem para nos darmos conta de que o sentido nao e imanente ao objeto do discurso, dependendo primordialmente de praticas linguisticas que se dao no seio das relacoes sociais. Portanto, ainda que normas penais prevejam uma limitacao da atividade estatal por meio da sua vinculacao ao texto legal, essa e uma atividade epistemologicamente impossivel, uma vez que o sentido somente pode emergir no seio das praticas concretas que circundam os processos de Estado (1).

    Isso pode ser percebido nas dinamicas que envolvem a producao do "traficante" e do "usuario" (2) no contexto judiciario. Nao podendo a lei 11.343/2006 definir intrinsecamente os limites objetivos de cada um desses enunciados para a concretizacao dos ideais de "cuidado" com uns e de "criminalizacao" de outros, cabe as praticas estatais produzir e atualizar os sentidos de cada um desses termos. Entretanto, devemos notar que tais enunciados nao sao colocados em circulacao independentemente das relacoes de poder, como de genero e sexualidade, uma vez que as praticas generificadas que compoem as relacoes sociais "nao circulam ou existem 'fora do Estado', mas nele e por ele se tornam viaveis e compreensiveis" (VIANNA; LOWENKRON, 2017, p. 6).

    Com o presente artigo, objetivamos analisar diferentes modos como genero e sexualidade operam nos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal por ocasiao do Recurso Extraordinario 635.659/2011, o qual demanda a declaracao de inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11343/2006, dispositivo este que criminaliza o "usuario" de drogas no Brasil. Para tanto, dedicamo-nos especialmente a analise da mobilizacao das categorias "familias" e "ambientes honestos", manejadas nos votos dos ministros.

    Partimos, pois, do seguinte questionamento principal: quais sao as demarcacoes discursivas em genero e sexualidade produzidas pelos(as) ministros(as) do Supremo Tribunal Federal na analise sobre a "questao das drogas" no pais?

    Na primeira parte do artigo, nos procuramos abordar as ambiguidades juridicas em torno das categorias "traficantes" e "usuarios", bem como os caminhos institucionais do STF no debate sobre as drogas; na segunda secao, analisamos as relacoes existentes entre o enunciado "familia" e os seus delineamentos na producao discursiva dos "ambientes honestos" nos votos dos ministros do STF no contexto de julgamento do Recurso Extraordinario 635.659/2011.

  2. As ambiguidades juridicas entre "traficantes" e "usuarios"

    Ao promulgar a lei 11.343/2006, o Estado brasileiro instituiu o Sistema Nacional de Politicas Publicas sobre Drogas (SISNAD). O fundamento do SISNAD, portanto, era o de produzir estrategias de controle que permitissem a reducao do consumo e da venda de substancias ilicitas. As medidas adotadas pela lei seguem o roteiro tipico das leis penais brasileiras. No primeiro tomo, compreendido entre os artigos 1[degrees] e 26, as nocoes relativas aos "cuidados" pretensamente democraticos e constitucionais acerca dos fenomenos relativos as drogas preenchem os seus incisos. Nesse espaco-tempo do texto normativo, as expressoes "consenso nacional", "projeto pedagogico de prevencao" e "inclusao social" ilustram, dentre tantas outras, esforcos politicos que objetivam demonstrar a preocupacao do "Estado" com o bem-estar social. Em linhas gerais, a figura do "usuario", prestes a ser recuperado pelas "politicas publicas sobre drogas", aparece ai de forma mais contundente.

    Na segunda parte da lei 11.343/2006, a versao "cuidadosa" do "Estado" desaparece. As acoes se concentram em demonstrar o percurso legal de como o "usuario" se converte em "traficante". Entre os artigos 27 e 75, as palavras-chave revelam a "repressao", o "crime", as "penas" e os "procedimentos penais" como instrumentos de controle. As condutas que indicam as possibilidades em que alguem sera considerado "usuario" ou "traficante" nao aparecem descritas de forma clara.

    Essas ambiguidades legais vivenciadas pelos sujeitos submetidos ao processo de criminalizacao referem-se especialmente a quantidade e a qualidade das substancias encontradas nas abordagens policiais. Se falamos de um consumidor contumaz de determinada substancia, aquela podera ser sua quantidade mensal (ou bimestral) de uso. Como tambem podera ser uma quantidade comprada para ser repartida com outras pessoas. Nao e possivel compreender, pela legislacao atual, quais criterios dessas condutas serao suficientes para tornar alguem um agente do "trafico de drogas".

    Logo, "usuarios" e "traficantes" resultam de dinamicas de Estado, nas quais se da a producao de seus sentidos. As decisoes judiciais, como expressoes de praticas discursivas da comunidade interpretativa, participam da demarcacao da linha entre um enunciado e outro. Isso pode ser percebido pela atuacao dos ministros do Supremo Tribunal Federal acerca do assunto.

    O Supremo Tribunal Federal (STF) vem, nos ultimos anos, recebendo acoes judiciais que tratam sobre a tematica das "drogas". A Corte tem sido provocada a estabelecer as orientacoes jurisprudenciais que os diversos orgaos estatais, notadamente do Sistema de Justica Criminal, deverao seguir ao lidar com os crimes previstos na Lei 11.343/2006. Em 2011, por exemplo, a Procuradoria Geral da Republica, representada por Deborah Duprat, ajuizou a Arguicao de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 187 contra a proibicao das manifestacoes a favor da legalizacao das drogas, em especial da maconha. Os ministros do STF, na ocasiao, consideraram que a livre manifestacao seria o pressuposto para que os sujeitos pudessem ir as ruas reivindicar do poder publico um posicionamento sobre as drogas. Os(as) ministros(as) indicaram que o conteudo das manifestacoes tinha carater informativo, demonstrando, inclusive, os beneficios de uma possivel legalizacao. A ADPF 187 foi emblematica para as discussoes juridicas sobre as drogas no Brasil. As "Marchas da Maconha"--como ficaram amplamente conhecidas--tem como pauta-base a legalizacao da maconha e a possibilidade de gestao publica de sua producao. Os movimentos que compoem as frentes antiproibicionistas defendem que o atual modelo legislativo incide diretamente na criminalizacao e no exterminio de jovens negros e pobres. A "guerra as drogas", nas narrativas desses movimentos, assumiria o papel de "encarcerar" e "matar" os jovens, bem como oneraria os gastos do Estado com a pasta da Seguranca Publica (3).

    A legalizacao da maconha, nesse sentido, desafogaria o sistema penitenciario e permitiria que os sujeitos fossem tratados como usuarios, garantindo o tratamento em saude adequado aos que se interessassem. Ademais, a possibilidade de auferir recursos com tributos, atraves da taxacao sobre a producao da maconha, encontra respaldo em parte dessas narrativas (MARTINEZ, 2019). A escolha da maconha como bandeira de reivindicacao e defendida pelas organizacoes antiproibicionistas por ser ela uma planta de pequeno custo de producao e com niveis baixos de dependencia. Os exemplos de paises que ja promoveram a legalizacao apenas da maconha sao utilizados como plataforma para garantir a legitimidade da defesa publica da substancia.

    Entretanto, a ADPF 187 representa apenas uma das camadas dos processos judiciais com que os servidores do STF lidam. O comercio de outras substancias, como o crack e a cocaina, tem ocupado a agenda jurisdicional do tribunal. Diferentemente da discussao aberta, plural e unanime que os ministros do STF intentaram transparecer no julgamento da acao a respeito das marchas, os processos relativos ao "trafico de drogas" tem demonstrado acirramentos ideologicos que merecem destaque. Ministros tem relativizado questoes que antes eram consideradas absolutas, afetando diretamente os sujeitos que enfrentam processos judiciais que impoem sancoes a fatos relacionados ao mercado de drogas ilicitas.

    Nos anos subsequentes a 2011, porem, o universo de argumentacoes e teses defendidas sobre o comercio e o consumo de drogas ilicitas passou a se adensar apos a interposicao do Recurso Extraordinario 635.659/SP no Supremo Tribunal Federal. O recurso trata do caso de Francisco Benedito de Souza, preso na detencao provisoria do municipio de Diadema, Sao Paulo. Apos uma inspecao feita pelos agentes penitenciarios no pavilhao em que Francisco morava, foram encontrados cerca de tres gramas de maconha que estavam escondidos na cela. Ao identificarem a substancia, Francisco foi encaminhado para a direcao prisional e a Vara de Execucoes Penais para que fosse iniciado o procedimento de sindicancia. Apos a constatacao das propriedades quimicas e a confirmacao pelo laudo pericial da Policia Civil de Sao Paulo, Francisco foi condenado a cinco meses de prestacao de servicos comunitarios, conforme o artigo 28 da lei 11.343/2006, tendo sua condenacao mantida pelo Tribunal de Justica do estado de Sao Paulo. A Defensoria do Estado de Sao Paulo recorreu da decisao junto ao STF, indicando que a condenacao criminal por porte pessoal de drogas constrangia o direito a intimidade e a vida privada. Os...

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