O financiamento eleitoral nos Estados Unidos: Citizens United v. FEC e os super PAC

Autorjosé Antonio Dias Toffoli
CargoMinistro do Supremo Tribunal Federal; Vice-Presidente do STF; Presidente da Comissão de juristas incumbida, pelo Senado Federal, de elaborar anteprojeto do Novo Código Eleitoral; Professor Colaborador do Curso de Pós- Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Páginas9-26

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José Antonio Dias Toffoli 1

Introdução2

Há muito, as regras de financiamento eleitoral, a influência do dinheiro no processo político e o efeito corruptor das doações de campanha são objeto de preocupação no direito norte-americano, marcado pelo alto grau de regulamentação e pelo esforço empreendido para mitigar possíveis influências deletérias do dinheiro no processo político e nas liberdades políticas fundamentais. No contexto norte-americano, é notável também a diversidade de fontes normativas que regulam o tema: há normas federais para as eleições federais e normas estaduais para os pleitos locais e estaduais.

No Brasil, por seu turno, as legislações eleitorais vigentes nos períodos do Império, da República Velha e do Estado Novo não regulavam o financiamento das campanhas eleitorais. Somente após a Constituição democrática de 1946 e a retomada das eleições diretas para presidente da República é que se editaram as primeiras normas dedicadas a regulamentar o financiamento das eleições, quais sejam, o Decreto-lei 9.258, de 14 de maio de 1946, e o Decreto-lei 1.164, de 24 de julho de 1950, que instituiu o Código Eleitoral3. Contudo, somente com a edição das Leis nº 4.740,

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de 15 de julho de 1965, e nº 5.682, de 21 de julho de 1971, é que se regulamentaram as doações eleitorais por empresas privadas, vedando-se aos partidos políticos receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, contribuição, auxílio ou recurso procedente de empresa privada de finalidade lucrativa ou de entidade de classe ou sindical. Todavia, as legislações posteriores adotaram uma posição mais maleável, permitindo, desde então, que as empresas privadas com fins lucrativos também contribuíssem no financiamento eleitoral4.

Para a presente análise, cumpre ressaltar, desde já, dois aspectos distintos entre os sistemas do Brasil e dos Estados Unidos no financiamento de campanhas eleitorais. Primeiramente, a questão relativa a propagandas nos meios de comunicação: enquanto, no Brasil, a lei proíbe a compra de propaganda eleitoral no rádio e na televisão5, bem como na Internet6, somente sendo admitida - observados certos parâmetros - na imprensa escrita (art. 43, Lei 9.504/97), nos Estados Unidos, não existe horário eleitoral gratuito, de forma que os próprios partidos, candidatos e apoiadores podem comprar tempo no rádio ou na televisão, ou, ainda, espaços na imprensa escrita para fazer suas propagandas. Em segundo lugar, no Brasil, as pessoas jurídicas podem fazer doações e contribuições para as campanhas eleitorais7 - exceto aquelas expressamente vedadas pelo art. 24 da Lei 9.504/978 -, permissão essa que tem sido objeto de questionamentos no Supremo Tribunal Federal.

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Conforme se verá a seguir, nos Estados Unidos, as corporações não podem financiar diretamente as campanhas dos candidatos, mas podem contribuir de forma indireta por meio dos Comitês de Ação Política (Political Action CommitteesPAC)9.

O debate acerca da constitucionalidade da participação de empresas privadas no financiamento de campanhas eleitorais foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 4650, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ocasião em que Corte considerou inconstitucionais as regras relativas a doações de empresas privadas para campanhas eleitorais e partidos políticos, uma grande inovação que passou a valer a partir das eleições municipais de 2016.

É notório, por sua vez, que recentes decisões da Suprema Corte americana têm afetado e alterado substancialmente a dinâmica do financiamento de campanha nos Estados Unidos, trazendo questões fundamentais para o primeiro plano do debate constitucional; especialmente a partir do cotejo entre a regulamentação das contribuições às campanhas eleitorais e a primeira emenda à constituição americana, asseguradora da liberdade de expressão e de seu corolário, o discurso político.

No presente ensaio, focalizaremos a perspectiva norte-americana sobre as regras de financiamento das campanhas eleitorais, concedendo especial atenção à decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Citizens United v. FEC e ao surgimento dos chamados super PAC.

Processo histórico do financiamento eleitoral nos Estados Unidos

A controvérsia sobre o financiamento do processo eleitoral tem sido uma constante no processo histórico-político dos Estados Unidos. Conforme lembra Anthony Corrado, pode-se rastrear pedidos de reforma

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do financiamento de campanha desde pelo menos a Guerra Civil (1861 – 1865)10.

As reformas mais profundas na legislação norte-americana sobre financiamento eleitoral foram decorrentes de escândalos envolvendo doações ou corrupção. Anthony Corrado narra que, no final do século XIX, era marcante, nas eleições federais, a influência e a importância de grandes empresas com interesses nas políticas dos governos11.

Em 1904, acusações formuladas pelo juiz Alton B. Parker, candidato pelo partido Democrata, de que o então presidente Theodore Roosevelt estaria favorecendo grandes empresas que teriam realizado doações para a campanha presidencial, com a finalidade de influenciar as decisões do governo, resultaram na edição, em 1907, do chamado TillmanAct, proibindo contribuições de empresas e de bancos nas eleições federais12.

Anos depois, em razão do crescimento do poder dos sindicatos dos trabalhadores como importante fonte de financiamento das campanhas eleitorais, durante a era do New Deal, foi editado, em 1947, o Taft-HartleyAct, estendendo a proibição imposta às empresas às doações sindicais13. Como

saída para essa proibição, os sindicatos passaram a organizar comitês independentes de apoio a candidatos, mediante financiamento de seus próprios membros, surgindo, assim, os chamados PAC (Political Action Committees), prática essa a que, posteriormente, as empresas também aderiram14.

Em 1971, o Congresso, em mais uma tentativa de conter o aumento dos custos das campanhas eleitorais, editou o Federal Election Campaign Act (FECA), que entrou em vigor em 1972. Conforme resume Anthony Corrado, a reforma combinou duas abordagens: na primeira parte,

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estabelecia-se o limite legal de gastos que os candidatos podiam ter com suas próprias campanhas, assim como o limite de gastos com os meios de comunicação; na segunda parte, impunham-se rigorosos procedimentos de divulgação dos gastos dos candidatos federais e dos comitês políticos.

Contudo, em 1974, após relatos de abusos financeiros na campanha de Nixon (1972) e a eclosão do escândalo Watergate, o FECA sofreu ampla e abrangente reforma. Conforme explicita Olivia Raposo da Silva Telles,

[a]s Emendas de 1974 ao FECA representaram a mais abrangente reforma já feita nos Estados Unidos em matéria de financiamento eleitoral. A lei de 1974 deixou poucas das disposições originais intactas. De fato, ela tornou mais estritas as regras sobre a prestação de informações, impôs novos limites aos gastos e às contribuições, incluindo as de indivíduos, dos comitês dos partidos nacionais e dos comitês de ação politica (...), substituiu os limites impostos aos gastos com a mídia por limites totais de gastos com campanhas federais e restringiu os gastos partidários nas campanhas. Além do mais, instituiu um programa de financiamento público de campanhas presidenciais, e uma nova agência, a Federal Election Commission (FEC), para dar publicidade às informações e aplicar a lei.15 Assim, para administrar e dar efetividade às novas disposições, foi criada a Federal Election Commission (FEC), uma agência independente, com a atribuição de regular e fiscalizar o financiamento eleitoral.

É importante mencionar ainda que a reforma de 1974 criou um sistema opcional de financiamento público para as campanhas presidenciais, administrado pela FEC. Nas eleições gerais, o candidato podia receber um montante fixo16 para cobrir todas as despesas de campanha, mas devia abster-se de receber qualquer doação privada adicional (de indivíduos, PAC ou comitês do partido). Nas eleições primárias, os candidatos podiam receber bonificações proporcionais às pequenas contribuições privadas que

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recebessem.

Segundo Anthony Corrado, “o objetivo desse sistema era reduzir as pressões de angariações de fundos nas campanhas nacionais e incentivar as pequenas contribuições nas campanhas presidenciais”17. Para ingressar no programa, o candidato devia submeter-se a limites de gastos de campanha, inclusive de recursos próprios. Vale ressaltar, ainda, que os recursos do programa adviriam de uma opção assinalada pelos contribuintes individuais no formulário de declaração do imposto de renda, direcionando US$ 3 do seu imposto para o Presidential Election Campaign Fund, conta mantida pelo Tesouro dos EUA.18 A Suprema Corte norte-americana, em 1976, analisou a constitucionalidade das disposições das emendas ao FECA no célebre caso Buckley v. Valeo, ocasião em que decidiu pela constitucionalidade da imposição de limites de contribuições diretas às campanhas eleitorais e da sua divulgação, a fim de evitar a corrupção ou a “aparência” de corrupção e salvaguardar a integridade do processo eleitoral. Todavia, a Corte declarou inconstitucionais os limites de gastos de recursos financeiros dos próprios candidatos e os limites de gastos independentes realizados por indivíduos ou comitês políticos que não fossem coordenados com a campanha dos candidatos, por restringirem substancialmente a liberdade de expressão e de participação política, protegidos pela primeira emenda. Segundo a Corte,

[a] restrição sobre a quantidade de dinheiro que uma pessoa ou grupo pode gastar em comunicação política durante a campanha reduz necessariamente a quantidade de expressão, pois restringe o número de...

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