Financiamento sindical, direito do trabalho e crise: aproximacoes empiricas ao tema da funcionalidade do direito do trabalho para o capitalismo/Union financing, labor law and crisis: empirical approaches to the theme of labor law functionality for capitalism.

AutorBatista, Flávio Roberto

Introdução

Já há alguns anos que as perspectivas de apreciação dos direitos sociais comprometidas com a posição da classe trabalhadora têm se movimentado em torno de uma aparente aporia.

De um lado, observamos a crítica marxista dos direitos sociais, que tem obtido relevantes sucessos em demonstrar que, ainda que sua organização se dê em torno de ideias aparentemente ligadas à defesa classista, como proteção ou solidariedade, tais direitos sociais, e particularmente o direito do trabalho, apresentam função decisiva no sucesso da reprodução do modo de produção capitalista. Nesse sentido, releva notar que a mais importante contribuição dada até hoje nesse campo, a obra de Bernard Edelman (2016), diz respeito ao tema já prenunciado no título deste texto, o direito coletivo do trabalho. A obra de Edelman vem repercutindo intensamente na produção científica nacional há quase dez anos, atraindo críticas e loas, inclusive inspirando uma área do programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Por outro lado, observamos que a maior parte dos estudiosos dos direitos sociais que possuem inegável compromisso com a classe trabalhadora movimentam-se em torno do que se convencionou chamar de resistência (1). Mais do que expressar uma interpretação de tempo histórico - em que a classe trabalhadora estaria na defensiva, lutando para conter o conjunto de contrarreformas impostas em escala internacional e nacional pela classes proprietárias -, essa corrente costumeiramente apresenta-se na linha de frente da luta político-jurídica contra a adoção de medidas regressivas, apontando todos os problemas que serão ocasionados com seu advento e resistindo, tanto quanto possível, a sua efetivação (2). Entretanto, ultrapassado este momento político de luta, em que, derrotados os movimentos de oposição, verificamos a efetiva implementação jurídica da precarização dos direitos sociais, esta corrente engaja-se no que é possível nomear aqui, imaginamos que pela primeira vez, numa atuação de microrresistência hermenêutica: uma atuação institucional e jurídica no sentido de identificar lacunas, problemas, inconstitucionalidades, enfim, qualquer tipo de pequena possibilidade interpretativa de amenizar a precarização promovida por meio dos mecanismos internos à ordem colocados à disposição dos operadores do direito.

Esta disputa teórica fundamental não pode, evidentemente, ser objeto do limitado formato de um artigo científico, razão pela qual já advertimos, de plano, que ela não será aqui esgotada ou, sequer, explorada. Entretanto, ela apresenta caráter essencial por constituir o pano de fundo da hipótese de trabalho aqui adotada: momentos de contrarreformas precarizantes dos direitos sociais, especialmente em contextos de crise econômica - exatamente o quadro internacional que irrompe em meados dos anos 1970, agudiza-se em 2008 e desde a particular realidade brasileira se arrasta de modo mais intenso ao menos desde 2014, experimentando novo e profundo solavanco motivado pela pandemia da COVID-19 - são pontos de observação privilegiados para as dinâmicas de interação entre o direito do trabalho e o modo de produção capitalista.

Nesse contexto, o objetivo do presente artigo é examinar alguns dados que relacionam a garantia de direitos aos trabalhadores com o desempenho do modo de produção capitalista no Brasil, tendo especial atenção para as modificações provocadas nas garantias desses direitos pela destruição do tradicional sistema de financiamento sindical vigente no Brasil desde a década de 1930. Não se trata de uma investida que pretende lançar juízos de qualquer natureza à referida alteração legislativa, quanto aos seus saldos positivos ou negativos à classe trabalhadora. Na realidade, o objetivo que propomos é dúplice e, de certa maneira, passa transversalmente pela controvérsia noticiada na abertura da introdução deste artigo. De um lado, pretendemos testar a hipótese de que a retração dos direitos dos trabalhadores não contribui para a superação da crise do capitalismo, atuando, ao contrário, no sentido de seu aprofundamento, dada a capacidade de tal repertório jurídico-político em contrarrestar a queda tendencial da taxa de lucros. Nesse sentido, o artigo atua no próprio campo de debate imposto pelo direito burguês ao demonstrar que a retórica de "mais empregos com menos direitos" não somente é falaciosa como prejudicial à própria economia capitalista. Por outro lado, mas no mesmo movimento, a bem-sucedida demonstração da hipótese constituirá acúmulo empírico em favor da demonstração da funcionalidade do direito do trabalho para a reprodução do modo de produção capitalista, conforme defendido pela crítica marxista dos direitos sociais.

Assim, o desenvolvimento deste texto constará de três seções relativamente autônomas, a serem relacionadas em seção conclusiva: primeiro, um debate sobre a nova conformação do financiamento sindical, aspecto central da drástica contrarreforma promovida no direito coletivo do trabalho, seguida de discussão acerca de seus efeitos sobre a atuação do movimento sindical e, consequentemente, sobre os direitos individuais da classe trabalhadora; depois, um exame das consequências da crise econômica e da reforma trabalhista sobre a quantidade e qualidade dos postos de emprego e sua respectiva renda, que se vê aprofundada pela fragilização das entidades sindicais e pela ampliação da autonomia da vontade coletiva, isso a partir de uma breve comparação de alguns indicadores econômicos a respeito da situação da crise antes e depois da adoção das contrarreformas, tudo a fim de expor como estes supostos remédios à crise que passam pela flexibilização de direitos trabalhistas ou a corrosão das salvaguardas das trabalhadoras e trabalhadores na verdade apenas a retroalimentam e catalisam.

  1. Financiamento sindical e negociação coletiva

    Como já é bem conhecido no campo do direito, o modelo de organização das relações sindicais no Brasil conheceu um período de mais de oitenta anos de estabilidade, que sobreviveu a três mudanças de ordem constitucional e a diversas formas de organização política. Com efeito, o texto do Decreto no 1.402/1939, editado durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, e que objetivava regular o novo texto constitucional de 1937, era a norma vigente em 1943, quando foi consolidada pelo Decreto no 5.452/1943, a chamada Consolidação das Leis do Trabalho - CLT. A despeito da redemocratização formal em 1946, da posterior instituição de um regime ditatorial em 1964 - com novos textos constitucionais em 1967 e 1969 - e, por fim, do novo processo de redemocratização formal em 1988, o texto da CLT tratando das relações sindicais permaneceu praticamente inalterado. Claro que há muita produção teórica questionando diversos aspectos da organização sindical brasileira, especialmente em sua relação com o Estado (3), e que a Constituição de 1988 promoveu uma alteração profunda no quadro da liberdade sindical ao extinguir institutos como a carta sindical e o enquadramento sindical, o que gerou, inclusive, um acelerado processo de fundação de entidades sindicais que é até mesmo identificado como um processo de pulverização do movimento sindical (FILGUEIRAS, 2008; DAL ROSSO, 2013; BARISON, 2016), mas a espinha dorsal do Decreto no 1.402/1939 permaneceu intacta até a edição da Lei no 13.467/2017.

    Este núcleo do regramento sindical brasileiro está baseado em alguns institutos intimamente articulados entre si, respaldando-se e fundamentando-se mutuamente: a unicidade sindical - proibição de existência de mais de um sindicato por categoria profissional ou econômica em cada base territorial, nunca inferior a um município -, a sindicalização por categoria profissional e econômica - modelo vertical de organização sindical, que impede, por exemplo, a organização sindical por empresa -, a exclusividade de representação da categoria pelo sindicato único em cada base territorial, a autonomia privada coletiva - poder atribuído aos sindicatos profissionais e patronais de editar normas sobre condições de trabalho por meio contratual -, a estrutura estatal de natureza judiciária para solução dos conflitos coletivos de trabalho - o poder normativo da Justiça do Trabalho -, e, por fim, o que nos interessa aqui mais de perto, o financiamento sindical feito precipuamente por meio de uma contribuição obrigatória, cobrada de toda a categoria independentemente de sua filiação ao sindicato.

    Sobre este último aspecto, o texto original da CLT já estabelecia, na abertura do terceiro capítulo, sobre contribuição sindical, de seu quinto título, que versa sobre organização sindical, que "as contribuições devidas aos Sindicatos pelos que participem das categorias econômicas ou profissionais ou das profissões liberais representadas pelas referidas entidades serão, sob a denominação do 'imposto sindical', pagas, recolhidas e aplicadas" tal qual o previsto no supracitado Capítulo. Este dispositivo passou por uma alteração meramente cosmética em 1967, quando o Decreto-lei no 229/1967 substituiu a denominação "imposto sindical" pela atual formulação do instituto enquanto "contribuição sindical" (4). Pelos cinquenta anos subsequentes, o dispositivo não apenas permaneceu inalterado como foi objeto de reforço normativo pelo dispositivo do artigo 8, IV, da Constituição Federal de 1988, que, ao dispor sobre a recém instituída contribuição para o custeio do sistema confederativo, consignou expressamente que este tratamento era feito "independentemente da contribuição prevista em lei". Destaque-se a peculiaridade da solução adotada pela Constituição de 1988, já que, em princípio, era garantida a liberdade sindical individual, ou seja, a liberdade de cada indivíduo de filiarse, não se filiar ou desfiliar-se da entidade sindical responsável pela representação de sua respectiva categoria. Ao menos desde 1988, portanto, conviviam em aparente harmonia a ampla liberdade sindical individual com a obrigatoriedade de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT