A foundation of sociology of law/Uma fundamentacao para a sociologia do direito.

AutorKelsen, Hans

Uma fundamentacao para a sociologia do direito **

Hans Kelsen

I

Quando um dos lideres e fundadores da chamada ciencia "sociologica" do direito, novissima e cada vez mais forte, apresenta a opiniao publica uma grande obra, cujo titulo anuncia a fundamentacao desta nova ciencia, ha razoes para se dirigir a tal iniciativa uma curiosa expectativa e uma grande esperanca. Ate entao falharam todas as numerosas tentativas de reformar de cima a baixo a ciencia do direito, muitas das quais fazendo frequentemente ataques apaixonados contra uma jurisprudencia retrograda e nao cientifica sob o estandarte da 'sociologia'. E isso ao ponto de que se deveria duvidar seriamente de que por tras da formula comum da "sociologia" haveria realmente um esforco uniforme, voltado a um fim claro e determinado, vale dizer, uma fundamentacao cientifica. E se alguem entre todos estaria apto e capaz a apresentar esses fundamentos, este seria seguramente Eugen Ehrlich. Seus sedutores e cativantes escritos, em sua espirituosa e vivaz retorica, tem atraido um fiel sequito de seguidores, ha mais de duas decadas, indicando o caminho a ser seguido nesta luta pela ciencia do direito.

A oposicao fundamental, que ameaca dividir a ciencia do direito, no que tange ao objeto e ao metodo, em duas tendencias diferentes, desde a sua fundacao, resulta da dupla perspectiva a qual se acredita poder submeter o fenomeno juridico. Pode-se considerar o direito como norma, isto e, como uma forma determinada do dever-ser, como regra de dever-ser especifica e, em consequencia, constituir a ciencia do direito como uma ciencia normativa e dedutiva do valor, como a etica ou a logica. (1) Mas se tenta tambem conceber o direito como uma parte da realidade social, como fato ou processo cuja regularidade e compreendida indutivamente e explicada causalmente. O direito e aqui uma regra do ser de determinada conduta humana; a ciencia do direito, uma ciencia da realidade que trabalha segundo o modelo das ciencias da natureza. Ainda nao foi dito de modo algum se e em ate que ponto ela e tambem uma ciencia social. Mas na medida em que se atribui o carater de social a uma regra que afirma uma forma conhecida e homogenea de comportamento dos homens em seu convivio, uma ciencia que se empenha em procurar tais regras "sociais", as regras da vida juridica ou as regras do direito, e designada como ciencia social, ou caso se queira, sociologia. Que tal sociologia seja teoricamente possivel e desejavel para a explicacao do convivio dos homens nao pode ser colocado aqui em discussao. Se e em ate que ponto uma sociologia do direito e possivel e algo que ainda vai ser examinado mais adiante. E preciso ter clareza quanto ao fato de que uma sociologia do direito e essencialmente diversa, em objeto e metodo, de uma ciencia do direito que se coloca a tarefa de reconhecer nao o que de fato e, mas sim o que deve ser por conta do direito, de uma ciencia do direito valorativa, nao explicativa, em outras palavras: de uma ciencia normativa do direito. Nao se pode, naturalmente, falar de uma luta entre as duas disciplinas, no sentido de que, de um ponto de vista geral do conhecimento cientifico, somente uma ou outra seja legitima e possivel. (2) Inadmissivel e a confusao da problematica de ambas as tendencias, um sincretismo dos metodos da jurisprudencia normativa e da sociologia explicativa do direito. (3)

E discutivel que, sob tais circunstancias, possa ainda ter sentido qualificar como ciencia do direito ambos os tipos de tendencias cognitivas cientificas, suscitando assim a impressao de que ha um objeto comum. Com a diferenca da tendencia cognitiva e da forma de pensamento--aqui o ser, la o dever-ser--da-se como resultado tambem uma completa diferenca do objeto. Aquilo que os seres humanos em uma dada relacao social regularmente fazem e aquilo que por forca do direito devem fazer precisam ser consideradas necessariamente coisas formalmente diferentes, mesmo quando o conteudo das normas que determinam o que deve acontecer coincida com o das regras que descrevem o que efetivamente acontece; em outras palavras, ainda que nao houvesse outro direito que nao o consuetudinario. De um ponto de vista puramente metodologico, e pacifico que tanto o modo de conhecimento cuja essencia forma a jurisprudencia normativa, os juizos sobre obrigacoes juridicas e as autorizacoes, sobre normas juridicas no sentido de regras de dever-ser e relacoes de dever-ser, precisam ser de todo estranhos a uma ciencia sociologica do direito, a qual lida apenas com o ser. Uma ciencia "sociologica" do direito nunca pode dizer a que e sob quais condicoes uma pessoa ou uma categoria de pessoas esta obrigada ou autorizada juridicamente, mas apenas o que determinados seres humanos (com efeito, ate mesmo o conceito de pessoa e puramente normativo!) sob certas precondicoes costumam fazer ou nao fazer. Todas as nocoes de uma ciencia sociologica do direito podem apenas conter nocoes de realidade, juizos de fato, isto e, juizos sobre o nexo causal de determinados fenomenos regulares, e podem conter tao poucos juizos de valor--do tipo 'isto e licito, aquilo, ilicito', 'alguem e obrigado a isso, autorizado a isso'--quanto a biologia, a quimica ou a psicologia, para as quais nao existe o bom ou o mau, o certo ou o errado, a obrigacao e a autorizacao, mas somente fatos indiferentes aos valores e ao seu nexo causal.

Por enquanto, deixa-se em aberto se e como uma parte da realidade social pode ser diferenciada--por uma consideracao puramente causal, portanto (relativamente) privada de pressupostos--como direito ou vida do direito, em comparacao com outro tipo de realidade social efetiva sem qualquer relacao com certas normas (regras de dever-ser) pressupostas pelo observador como validas; em outras palavras, se e como pode ser concretizado o postulado de se conceber o direito como uma especie particular de regra do ser da vida social dos homens e de distingui-lo em relacao a outras regras do comportamento social. Evidentemente, a solucao de tal problema deve constituir a pedra fundamental e a pedra de toque de uma teoria sociologica do direito. Deixa-se estabelecido aqui apenas o seguinte: e extremamente desviante definir do mesmo modo a jurisprudencia normativa e a disciplina especial sociologica como ciencia do direito; nao somente se a solucao do problema primeiramente apontado venha a se demonstrar teoricamente impossivel, mas tambem no caso em que se reconheca como a essencia dos conhecimentos juridicos, como elemento especifico dos juizos que afirmam qualquer coisa como sendo juridica, uma afirmacao sobre um dever-ser, uma norma, uma obrigacao ou autorizacao, em sintese um juizo de valor, pois uma analise de qualquer juizo juridico se depara com tal elemento de valor ou de dever-ser. Assim, nao ha nenhuma duvida quanto a legitimidade da existencia de uma ciencia que, ao lado da ciencia normativa, pesquisa e explica o comportamento social regular dos homens. Ainda que fosse possivel distinguir como "direito" certas regras do comportamento efetivo de outras regras sociais, dando assim fundamento a uma sociologia especial do direito, este conceito de direito--que representa uma categoria do ser social--seria qualquer coisa essencialmente diversa do conceito normativo de direito, que entende o direito como norma e, por conseguinte, vai considera-lo como uma categoria do deverser. Se entre ambos os conceitos se suscita de alguma maneira uma relacao que justifique uma igualdade terminologica; este seria entao outro problema.

Deve ser visto como uma falha grave da obra de Ehrlich o fato que sua fundamentacao da sociologia do direito, ja no inicio, deixe de apresentar uma clara separacao entre consideracoes de valor e consideracoes de realidade. Ehrlich diz desejar estabelecer a sociologia do direito como uma ciencia puramente "teorica", em contraste com a jurisprudencia "pratica", do modo que foi ate entao desenvolvida. Ele repreendeu a falsa jurisprudencia por ser "abstrata e dedutiva". "Como se o espirito humano nao pudesse fazer mais que criar entidades sem alma, que quanto mais abstratas perdem cada vez mais a relacao com a realidade. Assim a jurisprudencia se opoe frontalmente a toda ciencia autentica, onde predomina o metodo indutivo, que procura aprofundar o conhecimento da essencia das coisas atraves da observacao de fatos e da coleta de experiencias (p. 6). A opiniao, ingenua, de Ehrlich e claramente aquela de que toda ciencia pode proceder apenas indutivamente; ele parece ignorar por completo a possibilidade de conhecimento cientifico com metodo dedutivo. Ele tambem parece esquecer, por sua aversao a abstracoes "sem alma", que nenhum conhecimento pode abdicar de abstracoes ou conceitos, os quais, em relacao ao fenomeno singular concreto, devem necessariamente ser "sem alma". Mas no que diz respeito a "relacao com a realidade", a sua falta nao pode ser uma recriminacao contra uma ciencia que desde o principio nao quer ser uma explicacao da realidade. O que resulta dessas afirmacoes, que nao sao outra coisa que lugares comuns, e a ideia de que uma "ciencia" do direito e possivel somente como disciplina indutiva e causal-explicativa. Nesse sentido, seria necessario, sem duvida, pensar uma sociologia do direito, que surgiria em perfeito contraste com uma jurisprudencia normativa. Mas e em uma direcao completamente diferente que Ehrlich busca a oposicao de sua sociologia do direito com a ciencia do direito ate agora desenvolvida. Esta tem considerado falsamente o direito como "regra para a conduta dos tribunais e de outras autoridades governamentais", ao passo que a sociologia do direito entende "o direito como uma regra da conduta universal humana" (p. 9) e so assim poe na base de seu conhecimento o autentico "conceito cientifico de direito" (p. 6). Naturalmente, por conta do duplo significado da palavra regra--regra do ser ou regra do dever-ser--, interessa muito o sentido em que Ehrlich emprega essa palavra ambigua. Por...

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