O genero da dignidade: humanismo secular e proibicao de tortura para a questao do aborto na ADPF 54/The gender of dignity: secular humanism and the denial of abortion rights as a form of torture in ADPF 54.

AutorRondon, Gabriela
  1. Introducao (1)

    Dignidade e um conceito reconhecidamente controverso na experiencia constitucional transnacional (Siegel, 2012). A complexidade de seu significado fica particularmente evidente quando e utilizado para teses opostas em disputas morais e normativas em bioetica, como sobre a questao do aborto. Uma das razoes para a ambiguidade pode ser explicada a partir de uma definicao oferecida por Jurgen Habermas (2010, p. 469): a dignidade humana seria o "portal, por meio do qual a substancia igualitarista e universalista da moralidade sao importadas para a lei". Apesar de ter uma substancia normativa identificavel no igualitarismo, nao se confunde com o direito fundamental a igualdade nem nenhum outro. E um preceito de duas faces, uma objetiva e outra subjetiva.

    Pela dimensao objetiva, nao se traduz simplesmente como direito individual, pois representa, na realidade, um fundamento do pertencimento a comunidade humana, que esta para alem daquilo que titulariza o individuo, mas, por sua dimensao subjetiva, seria de reconhecimento devido a cada pessoa humana justamente por sua singularidade. Por isso, a concretude de seu significado so seria encontrada entre o comunitario e o individual a cada interpretacao de violacoes de direitos, a qual Habermas (2010, p. 467) reconhece uma "funcao inventiva". Nessa ambiguidade esta a variedade do seu uso para a questao do aborto, por exemplo. O conceito e manejado na funcao inventiva de narrar uma violacao de direitos a vida potencial, quando da suporte a tese da criminalizacao, ou na de narrar a violacao a dignidade da mulher que gesta, quando fundamenta a tese de injustica da lei penal.

    Por sua polissemia em sentidos inclusive opostos, alguns classificaram o conceito de arriscado ou inutil a interpretacao constitucional ou bioetica e afirmaram que, por outro lado, poderia ser melhor substituido por outros conceitos mais assentados na historia constitucional transnacional, como autonomia ou igualdade (Macklin, 2003; Moyn, 2014). Reva Siegel (2013, p. 527) partiu da mesma constatacao empirica para encaminhar-se a outra conclusao: a abertura do conceito seria vantajosa por criar um vocabulario comum e "cultivar a comunidade, mesmo entre agonistas". Debora Diniz (2017) identificou ainda que a abertura do conceito podia ser particularmente produtiva para enquadrar demandas de protecao aos direitos em contextos onde principios liberais nao tem particular ressonancia, e identificou que esse podia ser o caso para a constitucionalizacao da questao do aborto na America Latina. De um ponto de vista pragmatico com foco na atuacao judicial, Christopher McCrudden (2008) afirmou que o principal beneficio do conceito nao era sua substancia filosofica, mas, sim, sua capacidade de permitir as cortes a negociacao de tensoes morais diante do pluralismo de um mundo globalizado.

    E possivel dizer que esse processo de negociacao esta em curso na experiencia de constitucionalizacao do direito ao aborto no mundo, em particular se tomarmos como parametro as duas cortes que foram ao mesmo tempo pioneiras e de maior impacto transnacional para o tema desde os anos 1970, a estadunidense e a alema. Tendo iniciado o debate constitucional de maneiras bastante distintas - uma, a partir de casos concretos que demandavam a descriminalizacao, a outra, em controle abstrato para questionar uma lei despenalizadora; a primeira, decidindo pelo reconhecimento de um direito amplo ao aborto, e a segunda, inicialmente pela permanencia da criminalizacao - ambas se encaminharam nos anos 1990 a um reconhecimento semelhante dos direitos em questao mediado pela ideia de dignidade.

    Este artigo parte de um breve resgate da jurisprudencia inaugural desses dois paises, em particular pela tentativa de compreender como o conceito de dignidade foi manejado por cada uma dessas tradicoes para a questao do aborto, para em seguida buscar analisar como o mesmo processo se deu no primeiro caso constitucional brasileiro sobre o tema, Arguicao de Descumprimento de Preceito Fundamental no 54 (ADPF 54), sobre anencefalia, apresentada ao Supremo Tribunal Federal em 2004 e decidida em 2012.

  2. A experiencia transnacional: Dignidade para a questao do aborto nos Estados Unidos e na Alemanha (2)

    Nos Estados Unidos, dois casos paradigmaticos foram julgados em conjunto no ano de 1973: Roe v. Wade, que questionava a criminalizacao do aborto no estado do Texas; e Doe v. Bolton, apresentado contra uma lei da Georgia (Estados Unidos, 1973a, 1973b). Nos dois casos, compreendeu-se que o direito fundamental em questao era o direito a privacidade das mulheres em suas decisoes reprodutivas, derivado da protecao a liberdade garantida pela decima quarta emenda da Constituicao do pais. Dignidade nao foi um preceito elencado para as decisoes, como tampouco tinha centralidade para a tradicao constitucional estadunidense, mas e possivel compreender que uma nocao inicial do conceito estava presente em subtexto.

    As consequencias da clandestinidade do aborto para a saude das mulheres foram consideradas como parte do argumento da injustica da criminalizacao, para alem de ser descrita unicamente como uma violacao de privacidade. Esse era um argumento ja desenvolvido pelos movimentos de mulheres a epoca. Por outro lado, reconheceu-se tambem um interesse do Estado na protecao a vida potencial, que ficou assentado de forma gradual pelo parametro dos trimestres (Weitz, 2012). O marco dos trimestres propunha uma regulacao da materia que acompanhava o desenvolvimento da gestacao, sob a perspectiva de que, quanto mais inicial o estagio de desenvolvimento, menor seria o interesse do Estado em protege-lo contrariamente as decisoes da mulher gravida.

    Assim, no primeiro trimestre nao caberia nenhuma interferencia legal a decisao de uma mulher em seguir ou interromper a gestacao; no segundo trimestre, o procedimento medico poderia ser regulado para proteger a saude da mulher, mas nao para limitar seu direito de escolha; e, no terceiro trimestre, proximo ao marco de viabilidade do feto com sobrevida extrauterina, as leis estaduais poderiam, se assim quisessem, regular ou restringir o acesso ao aborto, exceto em caso de risco a vida ou a saude da mulher. Mesmo sem referencia explicita, as decisoes dialogavam indiretamente com as demandas de protecao a dignidade da vida humana que circulavam entre movimento e contra movimento para a descriminalizacao do aborto nos anos 1970 (Siegel, 2012, 2013).

    Em alinhamento ao que foi decidido em Roe e ao marco legal da entao Alemanha Oriental, em que o aborto ja era descriminalizado ate 12 semanas desde 1972, foi aprovada em 1974, apos intensa mobilizacao feminista, lei que autorizava a realizacao do aborto no primeiro trimestre na entao Alemanha Ocidental, condicionada a realizacao de aconselhamento previo ao procedimento, com o objetivo de apresentar alternativas e possivelmente dissuadir as mulheres de realiza-lo. A lei era o resultado de uma decada de debates parlamentares que buscavam, ao mesmo tempo, reduzir a punicao para aborto e nao abandonar alguma protecao a vida potencial (Kommers, 2011). Imediatamente apos sua promulgacao, um questionamento de constitucionalidade foi levado a corte por grupo de parlamentares e governadores estaduais do partido democrata cristao e da uniao social crista, mobilizados pela conferencia dos bispos catolicos alemaes, sob o argumento de que a lei violava o principio da dignidade humana como um valor objetivo da ordem constitucional do pais.

    Nesse caso, conhecido como Aborto I, de 1975, a corte declarou a lei inconstitucional, mas nao por considerar que aborto deveria necessariamente ser objeto de lei penal, mas por afirmar que a lei entao questionada nao adotava medidas alternativas suficientes de valorizacao da vida, as quais a corte tampouco definiu (Dworkin, 2003). Decidiu-se que o dever do Estado de proteger o direito a vida e a dignidade "proibe nao so ataques diretos do Estado a vida em desenvolvimento, mas tambem requer a protecao e a promocao do desenvolvimento dessa vida" (Alemanha, 1975). Ao mesmo tempo, a corte decidiu tambem que o aborto nao sofreria punicao se realizado para gravidez resultante de estupro, grave perigo a vida ou a saude da mulher, grave malformacao do feto e se houvesse razoes sociais extremas que levassem a mulher a viver uma pressao extraordinariamente maior do que a normalmente vinculada a gestacao. Em particular, a ultima excecao pode ser considerada um reconhecimento parcial da demanda de dignidade articulada pelo campo feminista. Mesmo apos decidir pelo carater inconstitucional da lei despenalizadora, a corte reconheceu ser necessario haver excecoes a proibicao geral do aborto, devido ao reconhecimento do direito das mulheres do que chamou de "livre desenvolvimento de sua personalidade" (Alemanha, 1975).

    O tratado de unificacao da Alemanha forcou o retorno da questao do aborto a corte constitucional - alem de ja ser legalizado na Alemanha Oriental, na regiao ocidental tambem crescia o apoio a mudanca legal. Em 1992, houve aprovacao de nova lei pelo parlamento unificado que autorizava o aborto ate a 12a semana de gestacao, condicionada novamente a aconselhamento e a um periodo de espera de tres dias entre a primeira consulta e o procedimento. Assim como em 1974, grupos cristaos recorreram a corte constitucional, dando inicio ao caso Aborto II (Alemanha, 1993). A decisao da corte, tomada em 1993, reafirmou a decisao anterior ao considerar que o aborto e uma pratica indesejavel e que as mulheres tem, por regra, o dever de prosseguir com a gestacao, mas nao deveriam ser punidas por abortos realizados no primeiro trimestre se o parlamento adotasse um esquema regulatorio para proteger a vida potencial. Mais importante que isso foi ainda a compreensao do que significaria esse esquema regulatorio: nao so o oferecimento de aconselhamento compulsorio, que poderia buscar convencer a mulher a nao abortar desde que a abordagem nao fosse intimidatoria, mas tambem...

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