Genese Anticolonial do Constitucionalismo Latino-Americano/Anticolonial Genesis of Latin American Constitutionalism.

AutorSouza Filho, Carlos Frederico Mares de

Introducao: Por que sao latino-americanas as constituicoes?

Ha uma producao teorica muito extensa sobre o constitucionalismo latino-americano, chamado algumas vezes de 'novo' ou 'neo', mas nao ha consenso sobre seu inicio, sua genese. Roberto Viciano Pastor (1), em obra que comparte com outros autores, denomina de novo e desenvolve a ideia de que o e em relacao ao constitucionalismo europeu e nao a si mesmo. Assim, nega que haja um "velho" constitucionalismo latino-americano, como se o anterior fosse reproducao do europeu, portanto nao merecendo o adjetivo de latino-americano. Diz ainda que o novo nasce com a Constituicao venezuelana de 1999, por ser a primeira com participacao efetivamente popular. Nessa concepcao, a novidade e praticamente andina e entende que havia um constitucionalismo universal (europeu); em 1999, a America Latina inovou com as tres constituicoes andinas, da Venezuela, Equador e Bolivia. Ao contrario disso, desde o inicio do constitucionalismo, ha na America Latina uma busca permanente por alternativa local anticolonial como forma juridica de constituir Estados Nacionais. Neste artigo sera abordada apenas parte da trajetoria dessa busca com os dois primeiros paises a alcancarem a independencia, Haiti e Paraguai, ambos claramente antieuropeus.

O que caracteriza o constitucionalismo latino-americano nao e so o fato de escrever uma constituicao na America Latina por constituintes da regiao, mas por seu conteudo revelar formacoes sociais por um lado diferentes das da Europa e, por outro, com uma identidade regional. Assim, para ganhar o titulo de latino-americanas, as constituicoes tem de ter uma marcada identidade que as diferenciem das demais regioes do planeta. E necessario entender essas diferencas e identidades, nem sempre claras, ja os povos da America Latina, pensados na diversidade indigena e afrodescendente, entre outras, sao muito vastos apesar dos Estados serem tao parecidos entre si. O processo colonial sofrido aproxima todos os paises da regiao; eis um primeiro ponto de identidade, a formacao colonial. O segundo ponto, derivado do colonialismo, e a forma de exploracao do trabalho, escravagista e genocida, e o terceiro e a profunda exploracao extrativista da natureza, seja mineral, seja vegetal, o que implica em um controle antipopular da terra e da natureza.

No inicio do seculo XX, com a criacao dos Estados de Bem-Estar Social, houve uma mudanca na teoria constitucional europeia que passou a defender a existencia de uma forca normativa (2) nos textos constitucionais aprovados. Este 'novo', que a America Latina contribuiu fortemente com a Constituicao mexicana de 1917, ja fazia parte do pensamento latino-americano anticolonial desde o Haiti, em 1804, portanto outra caracteristica latino-americana que deve ser ressaltada. Quer dizer, quando Konrad Hesse elaborou sua teoria da forca normativa da constituicao, na America Latina ja se disputava a aplicacao direta das normas constitucionais, nao apenas no seculo XX com a Constituicao mexicana de 1917, mas antes disso, no Haiti, no Paraguai, na Constituicao bolivariana de Chuquisaca e mesmo na discussao perdida no Brasil, que nao conseguiu impedir a manutencao da escravidao com a Carta outorgada de 1824.

O que caracterizou o constitucionalismo do continente no fim do seculo XX, chamando a atencao dos teoricos, foi a inclusao de direitos mais ou menos autonomos dos povos indigenas e outros tradicionais, alem de uma forte protecao da natureza, muitas vezes denominada de meio ambiente. Esses dois direitos, povos e natureza, se contradizem e se opoem aos direitos individuais protegidos pela tradicao constitucionalista europeia, capitalista. A inclusao de povos com direitos nao individuais e protecoes ou direitos da/ou sobre a natureza que restringem direitos de propriedade individual da terra e o que da a essencialidade do carater latino-americano das constituicoes do seculo XX e XXI, a comecar pela brasileira de 1988. (3) Esses direitos se antagonizam com os direitos individuais por serem coletivos em sua essencia e existencia, entendidos nao como a soma de direitos individuais, mas como pertencentes a comunidade ou grupo humano determinado, no caso de povos, e indeterminado, no caso da natureza e, em consequencia, da terra. Essas caracteristicas sao a marca da anticolonialidade, por isso sao de tao dificil aplicacao nas sociedades capitalistas dependentes.

As constituicoes que inovaram na formulacao deste conteudo podem, portanto, ser chamadas de novas porque, embora ja houvesse a discussao dos direitos dos povos e da natureza, e do anticolonialismo, desde o nascimento dos Estados Nacionais, no comeco do seculo XIX, esses nao estavam explicitos. A maioria das constituicoes formadoras eram formalmente muito parecidas com as europeias, entretanto estava presente o germen da discussao sobre o Estado Nacional como protetor das especificidades sociais locais e limitante da propriedade individual da terra e de acumulacao de riqueza. Essa discussao foi vencedora tanto no Haiti como no Paraguai, por isso a opcao por estes dois nascimentos, que, de resto, sao os primeiros.

Este artigo pretende estudar o nascimento deste constitucionalismo nas independencias. Para isso, sera analisado o momento de nascimento dos Estados Nacionais e as forcas ou atores sociais presentes naquele momento. Os dois casos analisados serao as constituicoes oriundas da Guerra do Haiti e a ausencia de um texto escrito com o nome de Constituicao no Paraguai. Ambos sao paradigmaticos da luta anticolonial e auxiliam no entendimento da genese do constitucionalismo latino-americano, entendido como a adocao das ideias da modernidade para a criacao de Estados Nacionais com fundamento em regras juridicas, acrescida da idiossincrasia do continente, portanto anticolonial, anti escravagista e que favoreca as culturas locais, principalmente indigena.

O nascimento dos Estados Nacionais latino-americanos

Os Estados latino-americano e caribenhos nasceram sob o jugo do colonialismo e sob a pressao de um escravagismo organico. A genese das constituicoes latino-americanas e seu constitucionalismo esta presente na discussao das condicoes de formacao das sociedades independentes porque tiveram que enfrentar o debate sobre o escravagismo e a ocupacao da terra, dificultando a aplicacao dos modelos liberais que se apresentavam na Europa. A discussao sobre a ocupacao da terra esta muito presente na formacao das sociedades da America Latina em contradicao com a ocupacao liberal da America do Norte (4). Na America Latina, as metropoles mantiveram a terra sobre absoluto controle, assim como o trabalho escravo. As elites, nas independencias, pretenderam manter o controle sob a terra e a escravidao, por isso sua divergencia com os povos originarios, os camponeses e os "Libertadores". No Brasil, depois da independencia, a terra foi tao controlada quanto antes, sendo inacessivel aos trabalhadores. (5) Essa discussao gerou, em diversos paises, incompatibilidades com o constitucionalismo europeu ou norte-americano, ou pelo menos diferencas fortes, demonstrando a insuficiencia das teorias constitucionais exogenas. Dessa forma, as discussoes, ou melhor, a discussao sobre o nascimento dos novos paises independentes, sua forma juridica e organizacao politica tem tracos proprios que desde entao vao indicando o que viria a ser o constitucionalismo latino-americano tao explicito do seculo XXI.

Ao se analisar as constituicoes e os discursos constitucionais de Bolivar, Toussaint L'Overture, Francia, Artigas, San Martin, Marti ou Morelos, fica clara a insuficiencia das propostas europeias e norte-americana. Mesmo no Brasil, onde a independencia e a Constituicao foram feitas por um herdeiro portugues e que parece nao ter havido debate nem resistencia, meio escondido na historia, e possivel sentir esta preocupacao (6). Ainda que as posicoes que levavam em conta a realidade local tenham sido derrotadas ou traidas, estas marcas ficaram e se revelaram em outros momentos historicos, como no Mexico e na Bolivia, no seculo XX. Foram reveladas tambem nas leis que compuseram o mundo juridico de cada pais, como exemplo, a Lei de Terras, Lei no 601/1850, no Brasil (7).

As contradicoes entre colonialismo e independencia, liberdade e escravidao, natureza e producao para exportacao, sociedades hegemonicas e sociedades tradicionais, fortemente presentes na genese do constitucionalismo latino-americano, no seculo XIX, podem desvelar as inovacoes ocorridas no final do seculo XX e XXI, que tem como ponto culminante a Constituicao mexicana de 1917, as andinas do seculo XXI e a cubana de 2019. Alguns autores, seguindo uma classificacao de Raquel Yrigoyen (8), sustentam que o 'novo' constitucionalismo nasceu no fim do seculo XX e se aprimorou em degraus ou momentos--esses crescem reconhecendo a existencia de povos ate o autorreconhecimento estatal como plurinacional. Esta trajetoria assim entendida deixa curta a historia e esconde os ricos debates e lutas na formacao dos Estados Nacionais no comeco do seculo XIX e mesmo no fim do XVIII, deixando de considerar a extraordinaria revolucao negra do Haiti. Assim, e necessario voltar as origens, esquecendo a palavra 'novo' e a rapida evolucao do seculo XX e XXI para entender as profundas origens do constitucionalismo latino-americano nas lutas pelas independencias. As discussoes, debates, angustias e praticas da formacao de Estados Modernos na America Latina estiveram ausentes nas discussoes europeias e nos escritos dos teoricos europeus e eurocentristas que, em geral, viam no emaranhado legislativo constitucional do seculo XIX uma reproducao automatica e literal das constituicoes do chamado Velho Mundo. Os constitucionalistas europeus que estudam o contexto latino-americano se surpreendem com as solucoes encontradas para dar vida aos direitos dos povos e da natureza, terra, principalmente nos seculos XX e XXI. O seculo XIX e esquecido, como se nao houvesse nem debates nem...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT