A hegemonia do discurso liberal sobre direitos homossexuais no STF/The hegemony of liberal discourse on homosexual rights at the STF.

AutorMonica, Eder Fernandes
  1. Introducao

    Muito se debate sobre a oportunidade que tem os movimentos sociais de esquerda, geralmente criticos a estrutura liberal que marca o Estado moderno, de produzir mudancas radicais por acoes internas ao proprio sistema estatal. Sera que quando esses grupos realizam algum tipo de solicitacao por mudancas politico-juridicas ao Estado, ainda conseguem guardar o vies critico e promover mudancas para alem do paradigma liberal ou sao absorvidos por esse paradigma hegemonico? Partindo do pressuposto de que estamos efetivamente diante da hegemonia liberal, compreende-se que a maioria das acoes por mudancas na estrutura do Estado, quando promovidas por intermedio de seus proprios instrumentos burocraticos, transitarao dentro das possibilidades concedidas pela propria hegemonia, ja que, para ser hegemonico, precisa guardar intacto o seu nucleo fundante.

    Para esse tipo de proposta de pesquisa, podemos realizar analises empiricas e documentais sobre varios temas, em diferentes instancias das instituicoes do Estado. Entretanto, para fins do presente artigo, limitar-me-ei a analise de algumas acoes de controle de constitucionalidade abstrato sobre direitos homossexuais que foram analisadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da metodologia de analise de discurso. Em que pese alguma impressao de que o movimento homossexual como um todo foi concorde com o conteudo e o modo de operacao desses pleitos judiciais, o fato e que existem muitas discordancias internas ao movimento sobre o modo como essas acoes sao executadas e seus resultados praticos, principalmente em decorrencia da centralidade da influencia de homens homossexuais nas pautas do movimento LGBTQI+ (1). Uso aqui o conceito de direitos homossexuais e nao o de diversidade sexual justamente porque quero destacar que estamos diante de uma dinamica centralizada nos discursos homossexuais, que sao facilmente assimilados pelo padrao liberal e heterossexual de liberdade sexual, coadunando-se com o modo de producao capitalista.

    Por isso, pergunto-me, desde antemao, se a estrutura do sistema juridico, sedimentada na tradicao liberal, permite outros sentidos politicos que nao sao compativeis com o paradigma liberal, como a proposta de um "duplo fazer" do genero e da sexualidade (VIANNA & LOWENKRON, 2017).Segundo as autoras, existe uma relacao complementar e cooriginaria entre Estado e genero, desde que se compreenda o Estado como um campo de disputas, uma arena de debates e lutas atravessado por distintas polissemias e compreensoes sobre os valores corretos a serem perseguidos. Desse modo, tanto o Estado seria generificado, quanto o genero seria estatizado, dentro do "duplo fazer" operado entre os dois. Corroboro com a compreensao de que as discussoes sobre genero conseguem, em alguns sentidos, operar dentro desse "duplo fazer". Mas quando estabelecemos distincao conceitual entre genero e sexualidade (2) e passamos a encarar a sexualidade como uma categoria a parte, e possivel chegarmos a conclusoes divergentes e, como quero aqui apontar, ate um caminho hegemonico que anula esse duplo fazer.

    Tambem me questiono se a estrutura tradicionalmente liberal determina, necessariamente, as condicoes de producao do discurso juridico, a tal ponto de ser inevitavel o encontro com a hegemonia liberal juridica. Portanto, o objetivo principal (3)deste artigo e o de debater o modo como as pautas do movimento LGBTQI+, especificamente a dos direitos homossexuais, sao recepcionadas e filtradas pela leitura hermeneutica dos Ministros a ponto de perderem sua potencia critica em relacao ao paradigma liberal (4), desativando o "duplo fazer" acima destacado. Na analise de discurso realizada, busco os sentidos do discurso liberal por intermedio de algumas categorias, que serao explicadas no proximo item.

    Trabalho com a hipotese de que, dada a tradicao liberal constitutiva do nosso sistema juridico, a interpretacao desenvolvida pelo STF nos casos especificos de direitos homossexuais, mesmo com nuances diversificadas, acaba colonizando os discursos dissidentes, alternativos ou contrarios ao paradigma liberal sobre o modo de producao de politicas de genero e sexualidade, produzindo uma normatividade especificamente homossexual, a "homonormatividade" (5). As consequencias das acoes operadas dentro desse sistema liberal seriam duas, a meu ver: a) assimilacao do discurso tradicional sobre comportamentos e liberdades, em moldes especificos para uma liberdade sexual inteligivel para o mercado capitalista, dentro de um amplo programa politico internacional que pode ser resumido como projeto Global Gay (6); b) esvaziamento do sentido radical dos discursos dissidentes e baixo impacto de transformacao social em sentido nao liberal, dada a hegemonia do paradigma liberal sobre liberdade sexual. Consequentemente, restam-me duvidas sobre a possibilidade de acoes potentes que promovam uma reforma - ou ate a propria revolucao - do sistema, para alem dos limites do paradigma liberal, dentro da perspectiva e do recorte especifico de analise.

    2 Conceitos e Metodologias

    Para analisar a questao, aproprio-me, com algumas adaptacoes, do conceito de hegemonia decorrente das analises de Gramsci (1999), principalmente no seu aspecto critico em relacao ao modo de operacao do sistema liberal capitalista. A hegemonia se faz a partir de mecanismos especificos de formacao da vontade coletiva e da cultura, principalmente no seu ambito intelectual e moral. Mais precisamente, e a forma como o poder e exercido no Estado burgues. Desse modo, a colonizacao da vida operada pelos sistemas de economia e poder hoje atua por intermedio da constante expansao de mercado de consumo produzida pelo capitalismo e pela reafirmacao dos ambitos de acao do poder, que promovem um controle do sistema atraves de constantes atualizacoes e reformas internas (7).

    Como um dos principais nucleos de legitimidade do paradigma liberal e a sua busca por igualdade politico-juridica formal, a estrutura do grupo dominante esta formatada para, por meio dos seus mecanismos de participacao, possibilitar algumas reformas internas, mas sempre dentro dos quadros fundantes ja existentes. Essa atualizacao do sentido de igualdade e mais potente entre aqueles que possuem mais poder economico e politico e menos potente para os grupos subordinados, que, para acessarem esse sistema de participacao, devem se comunicar em uma linguagem inteligivel pelo paradigma dominante, gerando sua integracao e cooptacao. E nesse momento que a hegemonia liberal opera seu efeito atualizador mais significativo: reafirma seu poder, irradiando-se tambem pelos campos sociais dissidentes e impondo, cada vez mais, unidade economica, politica, intelectual e moral. Sedimenta-se, assim, a hegemonia do grupo dominante, em que o Estado cumpre a funcao de mecanismo executante do seu poder. As instabilidades e dissonancias, mesmo que justas em si, sao reinterpretadas pelo poder hegemonico, que concede alguns espacos de liberdade de acao dentro dos limites possiveis do paradigma liberal.

    Em sintese, hegemonia seria o proprio poder e o modo como esse poder, em maos de um grupo dominante, exerce sua capacidade de liderar e cooptar os grupos subordinados, dentro de uma triade de condicoes. Em primeiro lugar, as negociacoes politicas sempre levarao em conta os interesses fundamentais do grupo dominante; em segundo, os dominados acessam o sistema adquirindo a linguagem do grupo dominante e adaptam suas pretensoes aos interesses fundamentais hegemonicos; por fim, uma vez que os interesses fundamentais e a gramatica dominante estao preservados, os dominados tem liberdade para desenvolver algumas de suas pretensoes, sempre limitadas e condicionadas. Portanto, o sujeito ativo da hegemonia tem por objetivo controlar e perpetuar as disposicoes fundamentais da ordem juridica, bem como as limitadas liberdades concedidas a partir das demandas dos grupos dominados, os sujeitos passivos da hegemonia.

    Nas sociedades modernas ocidentais, a atuacao do poder hegemonico nao se baseia essencialmente na forca fisica, mas tambem e principalmente pelos mecanismos institucionalizados de geracao de consenso. Por isso, nao e suficiente a dominacao do aparato estatal; e importante que se domine culturalmente a sociedade civil. Por isso, outras estrategias, para alem do controle burocratico estatal, sao desenvolvidas para a dominacao cultural (8). O caso dos direitos homossexuais exemplifica bem a situacao, pois questoes como afetividade, amor e felicidade, aliadas aos mecanismos capitalistas de construcao de desejos, fazem com que a cultura homossexual, antes marcada por sua dissidencia e diferenciacao em relacao a cultura dominante, tenha aspectos semelhantes aos desejos gerais de outros grupos: seguranca, estabilidade, felicidade, metas transversais que anulariam diferencas por colonizarem as subjetividades. Em contrapartida, o Direito cumpre funcao essencial de gerar consenso e pacificacao dos conflitos, mostrando-se como a sintese das divergencias e disputas em torno de um assunto polemico. Ele tambem e o instrumento mais importante para a identificacao da hegemonia, dada sua natureza formal, explicita e objetiva. Em consequencia, a dominacao cultural opera como complementacao, sendo controlada por meio de propagandas e atos publicos implicitos e explicitos de divulgacao dos valores dominantes como mais sublimes ou mais adequados a vivencia em sociedade (9).

    Os agentes estatais e os intelectuais que trabalham com o sistema juridico cumprem um papel essencial na justificacao e legitimacao da hegemonia. Mesmo que estejam bem-intencionados, atuam como "intelectuais organicos", fundamentais para a organizacao da sociedade em favor dos valores dominantes, reduzindo a potencia de eventuais estrategias contra o poder hegemonico. A forca do discurso juridico, muitas vezes envolto em tecnicismos ininteligiveis para o senso comum, geralmente silencia as vozes dissonantes em nome de uma suposta inevitabilidade...

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