História, lutas e desafios da organização do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR)/History, struggles and challenges of the organization of the National Movement of the Homeless People (MNPR).

AutorSilva, José Arnaldo Gama da
CargoARTIGO

Introdução

Este artigo trata da construção do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), abordando o desenvolvimento histórico de sua organização e de suas lutas no Brasil.

A história do fenômeno população em situação de rua remonta ao surgimento das sociedades pré-industriais da Europa, no período da chamada acumulação primitiva, em que os camponeses foram desapropriados e expulsos de suas terras, sem que a indústria nascente, nas cidades, pudesse absorvêlos com a mesma velocidade com que se tornavam disponíveis. "Em face disso, muitos se transformaram em mendigos ou ladrões, principalmente por força das circunstâncias, fazendo aparecer o pauperismo (Marx, 1988b). É nesse contexto que se origina, o fenômeno da população em situação de rua" (SILVA, 2006, p. 19).

Entendemos o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) como parte integrante dos movimentos sociais que, ao longo dos tempos, foram ganhando contornos, formas e tipos diferentes para travar a luta da classe trabalhadora, tanto nas áreas urbanas quanto nas rurais no "âmbito das relações de trabalho, ou ligados à reprodução - de luta pela terra, moradia, etc. - ou na luta pelas questões de gênero, étnico-raciais, etc. - os denominados identitários" (MARCONSIN, 2009, p. 59). Concordando com Marconsin (2009, p. 59), esses movimentos "se encontram em um ponto que lhes é comum: a luta pela obtenção de direitos na sociedade do capital". É parte histórica desse processo, no Brasil, a criação do MNPR para a defesa da população em situação de rua (PSR).

Ferro (2011, p. 7), fixando seus estudos na experiência do MNPR no Brasil, mostra que ele é o primeiro movimento social de abrangência nacional que representa esse segmento da população. A autora (FERRO, 2011, p. 74-75), inclusive, mostra que há experiências internacionais de organização da população em situação de rua que surgiram e lograram êxitos.

Segundo Ferro (2011), as pesquisas realizadas por Anker (2008) sobre a organização da população em situação de rua, na Dinamarca, e por Snow e Cress (1996) a respeito da organização da PSR nos EUA mostram que, apesar de expressivas, são organizações localizadas em algumas cidades, sem abrangência nacional. Na experiência estadunidense, por exemplo, os autores Snow e Cress (1996) afirmam que foram encontrados indícios de protestos de sem-teto em pelo menos 50 cidades nos EUA pelas organizações do movimento social (SMO) na década de 1980.

Podemos também destacar experiências latino-americanas de organização da população em situação de rua (1), como parte dos movimentos sociais neste continente, como por exemplo no Uruguai: Colectivo "Ni Todo Está Perdido (Nitep) (2) "; na Argentina: "Proyecto 7" (3). Entretanto, essas experiências também não possuem abrangência nacional.

Para Ferro (2011), o MNPR é um movimento social "sui generis", porque o processo de construção da organização da população em situação de rua é complexo, tem características próprias e apresenta avanços e recuos. Como nos demais países, enfrenta grandes dificuldades, mas, no Brasil, ele vem conseguindo se organizar nacionalmente.

As pessoas em situação de rua apresentam especificidades que tornam difícil a motivação para sua união coletiva e sua luta política. Essas pessoas se caracterizam, entre outros fatores, por: i) sua heterogeneidade (Silva, 2009), o que dificulta a construção de uma identidade coletiva; ii) ter escassa tradição associativa (Brasil, 2008); iii) sua pobreza extrema, uma condição que implica ter recursos limitados (moral, material, informativo e humano) necessários para a viabilidade de sua organização coletiva (Snow & Cress, 1996); e iv) uma maior incidência de problemas de saúde mental e uma alta taxa de uso frequente de álcool e/ou outras drogas, que torna esta população especialmente difícil de mobilizar. (FERRO, 2012, p. 14). Por essas características trazidas pela autora, antes de tratarmos da organização do movimento, importa nos referirmos, em traços gerais, a essa população de quem falamos. Resultado da lógica societal capitalista, a situação da população trabalhadora que é obrigada a viver nas ruas é um fenômeno social que tem aumentado em todo o mundo. Como traço comum, em todos os países, encontramos a exclusão do acesso aos bens produzidos e do usufruto da riqueza socialmente produzida pelas classes subalternas. A diferença está no perfil de sua composição nos vários países e regiões.

No Brasil, o I Censo e Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua foi realizado entre agosto de 2007 e março de 2008 e abrangeu 71 cidades brasileiras. O resultado revelou que 70,9% da população em situação de rua exerce alguma atividade remunerada, sendo que, nessas atividades, estão incluídos: catador de materiais recicláveis (27,5%); flanelinha (14,1%); construção civil (6,3%); limpeza (4,2%) e carregador/estivador (3,1%). Apenas 15,7% pedem dinheiro como principal meio para a sobrevivência. Segundo a mesma pesquisa, as principais razões apresentadas pelas pessoas que estão em situação de rua são: alcoolismo/drogas 35,5%; desemprego 29,8%; problemas com familiares 29,1%; perda da moradia 20,4%; separação/decepção amorosa 16,1%. A maioria, 52,6%, recebe entre R$20,00 e R$80,00 semanais, 74% dos entrevistados sabem ler e escrever, 17,1% não sabem escrever e 8,3% apenas assinam o próprio nome. A grande maioria, 95,5%, não participa de qualquer movimento social ou associativismo, 24,8% não possuem quaisquer documentos de identificação e 61,6% não exerce o direito de cidadania elementar, que é o voto (4).

Pelos dados, observamos o alto índice de absenteísmo em relação à participação em movimento social, o que demonstra o grande desafio do MNPR para organizar as suas bases. Outro aspecto que destacamos é o percentual elevado das pessoas que exercem alguma atividade laboral para sua sobrevivência.

Considerando a complexidade do tema, as condições de vida, a forma distanciada e dispersa como se situam na cidade e ainda as dificuldades censitárias para estabelecer um perfil atualizado e mais completo dessa população, um dos aspectos que nos chama a atenção são as possibilidades de organização da luta pelos seus direitos.

Para tratar da organização do MNPR, esse texto foi dividido em três partes. A primeira contextualiza os primórdios e o surgimento do MNPR no Brasil; a segunda faz uma retrospectiva dos congressos e de seu papel fundamental na consolidação da organização política do MNPR e a terceira aborda as lutas do MNPR.

Uma visão panorâmica do caminhar do MNPR e as lutas originárias

Para adentrarmos a história do movimento construída pelos próprios sujeitos, que resultou na formação do MNPR em 2005, é importante abordarmos as condições sócio-históricas prévias.

Para Silva (2008, p. 90), de início, é necessário apontar que há uma relação entre o surgimento do movimento e a ação de setores da Igreja Católica, particularmente, no início da década de 1980, com destaque para a Organização Auxílio Fraterno (OAF), situada na cidade de São Paulo (5). Ferro (2012, p. 17) mostra que, além de São Paulo, em Belo Horizonte, já em fins da década de 1980, também existia um nível de "organização e articulação" da "sociedade civil ligada à problemática das pessoas em situação de rua". Nos demais estados brasileiros era incipiente.

As primeiras prefeituras com perfil democrático-popular, cujos dirigentes foram eleitos após a ditadura militar, reforçaram esse processo. As ações das prefeituras de duas cidades brasileiras - São Paulo e Belo Horizonte - possibilitaram uma...

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