História do direito autoral na obra psicografada

AutorRenata Soltanovitch
Ocupação do AutorAdvogada sócia do escritório Vicente Vieira & Soltanovitch Advogados, mestre pela PUC/SP e pós graduada em Direito de Entretenimento pela Escola Superior de Advocacia
Páginas39-54

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O caso mais emblemático que envolve obras psicografadas ocorreu no ano de 1944.

Toda literatura sobre o tema remonta o caso “Humberto de Campos” como pioneiro na discussão de direitos autorais em obra psicografada no Brasil.

Nesta ação, a viúva e seus filhos, herdeiros de Humberto de Campos Filho, ingressaram com ação declaratória contra Chico Xavier – o médium psicografava suas obras – e a Federação Espírita Brasileira – editora dos livros.

Segundo consta no livro de Elizeu F. da Mota Jr.17e confirmado no próprio livro de Miguel Timponi18, que é a cópia do processo acima citado, o pedido inicial teve a seguinte redação:

“Sem querer entrar no exame do mérito literário dessas produções – obtidas, segundo versão espírita, por métodos ‘mediúnicos’ – deseja a Suplicante que
V.Excia. (sic), submetendo a hipótese – para sua elucidação – a todas as provas científicas possíveis, se

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digne declarar, por sentença, se essa obra literária É OU NÃO DO ‘ESPÍRITO’ DE HUMBERTO DE CAMPOS.

No caso negativo, se – além da apreensão dos exemplares em circulação – estão os responsáveis pela sua publicação:

  1. passíveis de sanção penal prevista nos artigos 185 e 196, do respectivo Código.
    b) proibidos de usar o nome de Humberto de Campos, em qualquer publicação literária.
    c) sujeitos ao pagamento de perdas e danos, nos termos da Lei Civil.

No caso afirmativo, isto é, se puder ficar provado que a produção literária em apreço é do ‘Espírito de Humberto de Campos’, deverá V. Excia (sic), ‘data vênia’, declarar:
a) se os direitos autorais pertencerão exclusivamente à Família de Humberto de Campos ou ao mundo espírita, representado, entre nós, pela Federação Espírita Brasileira; devendo, outrossim, ficarem definidos não só o caráter da intervenção do ‘médium’ como os limites – sob o ponto de vista literário e econômico – da sua participação.
b) se reconhecidos os direitos da Família de Humberto de Campos, poderão os titulares desses direitos dispor livremente dessa bagagem literária, sem quaisquer restrições, como dispõe (sic) da obra produzida ao tempo do desaparecimento do escritor.
c) se a Federação Espírita Brasileira e a Livraria Editora da mesma Federação estão passíveis das sanções previstas na Lei, pela publicação das obras referidas nos itens 2 e 3, sem a prévia permissão da família do escritor.”

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Contestada a ação pelo advogado e escritor do livro “A Psicografia ante os Tribunais”, sua defesa constava com preliminares de (i) pedido juridicamente impossível; (ii) petição inicial inepta e (iii) pedido declaratório impróprio, no mérito, pedia a improcedência da ação para declarar o médium o único detentor de direitos do autor.

A sentença, por sua vez, que possuía apenas o limite daquilo que foi proposto, ou seja, que “declarasse, por sentença, se são ou não são do espírito de Humberto de Campos as obras literárias referidas na inicial...” entendeu por bem em julgar carecedores da ação a esposa do falecido Humberto de Campos e seus filhos, deixando claro que, com a morte, extinguiu todos os direitos de Humberto de Campos e, portanto, os livros escritos por Chico Xavier após sua morte, não poderia atribuir direitos patrimoniais ao já falecido.

Destacam-se trechos da sentença pertinentes ao caso19:

“Nossa legislação protege a propriedade intelectual, em favor dos herdeiros, até certo limite de tempo, após a morte, mas, o que considera, para esse fim, como propriedade intelectual, são as obras produzidas pelo ‘de cujus’ em vida. O direito a estas é que se transmite aos herdeiros. Não pode, portanto, a suplicante pretender direitos autorais sobre supostas produções literárias atribuídas ao ‘espírito’ do autor.”

A sentença foi objeto de recurso. Porém, foi mantida na íntegra pelo Tribunal de Apelação do Distrito Federal, até sob o fundamento processual, ou seja, que a ação intentada

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não era a correta, pois o Poder Judiciário não é órgão de consulta20.

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O dilema sobre o assunto persistiu durante todo o trâmite do processo, embora inquestionável a seriedade de Chico Xavier sobre as psicografias publicadas. Porém, o assunto chegou a ser abordado na Federação das Academias, como

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relata Antonio Chaves em seu livro,21que embora o texto seja longo, vale a pena sua transcrição literal:

“Talvez tenha sido o nosso o primeiro país a tentar legislar sobre o assunto, procurando enfrentar o dilema: a quem caberiam os direitos autorais? Ao espírito impalpável? Ao médium? Aos herdeiros do ‘autor’?

Pela primeira solução optou a Federação das Academias. Certamente por considerar-se competente para ‘suscitar problemas sobre a imortalidade’: com o intuito de preencher o que lhe terá parecido uma omissão, encaminhou à Câmara dos Deputados um projeto de lei naquele sentido.

Ponderou, porém, a Comissão local de Direitos Autorais, no II Congresso de Escritores de Belo Horizonte (Diário do Congresso Nacional de 18.11.1947, pág. 8.154), que embora o trabalho fosse do ‘aparelho’, a aposição do nome do autor à obra afetava-lhe o direito moral, de evidente importância também para o editor e para o médium. O certo seria a celebração de um contrato entre os três interessados, no qual se estipulasse a divisão dos direitos de autor em partes iguais entre o médium e os herdeiros do nome do escritor que figura no frontispício, declarando-se também, por força de lei, a natureza psicográfica da obra.

Jorge Amado, quando deputado federal, apresentou substitutivo outorgando exclusivamente ao ‘médium’ os direitos autorais das obras psicografadas, dispensada mesmo para evitar dificuldades ao aparecimento da obra, a autorização de herdeiros do respectivo autor:

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‘Acreditar ou não na autoria da obra psicografada é matéria de fé.... Basta que o herdeiro seja incréu para que negue a autorização... O que se deve exigir é que, no caso das obras psicografadas, conste sempre, na capa e nas páginas de rosto do livro impresso, o caráter psicográfico da obra e o nome do médium que a psicografou. Assim fica o público de logo esclarecido que não se trata de obra original do autor quando vivo, e nenhum engano poderá se verificar que viesse redundar num abuso de credulidade’ (Diário referido,
09.09.1947, pág. 5.498).”

Ora, não resta dúvida de que, do ponto de vista jurídico, está tudo errado.

Clóvis Ramalhete, num irônico e irreverente estudo, Espiritismo e Direito Autoral, ‘Diário de São Paulo’, de 26.10.1947, pôs à calva a inconstitucionalidade do texto proposto, que contém um pressuposto religioso, dá por verdadeiro o fenômeno da psicografia, assente em postulado de fé, que é a sobrevivência da alma e fere a laicidade do Estado.

‘A lei não pode versar a psicografia, como não o faria sobre a virgindade de Maria’.”

O fato é que, tanto na lei quanto na...

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