Os impactos das gravidezes transmasculinas e de pessoas não bináries na filiação: (re)pensando o papel da presunção mater semper certa est a partir da experiência de parentalidades dissidentes nos 20 anos do Código Civil

AutorManuel Camelo Ferreira da Silva Netto
Páginas197-223
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Capítulo 8
OS IMPACTOS DAS GRAVIDEZES TRANSMASCULINAS E
DE PESSOAS NÃO BINÁRIES NA FILIAÇÃO:
(RE)PENSANDO O PAPEL DA PRESUNÇÃO MATER SEMPER
CERTA EST A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE
PARENTALIDADES DISSIDENTES NOS 20 ANOS
DO CÓDIGO CIVIL1
Manuel Camelo Ferr eira da Silva Netto2
“Por meio de diversos modos, todos os corpos trans*
rompem com as normas cisgêneras, reinventando
modos de ser para além das feminilidades e
masculinidades, como, por exemplo, a emergência da
não-binariedade.”
(NASCIMENTO, Letícia. Transfeminismo, 2021)
1. Introdução
O mês de julho do ano de 2022 foi marcado por diversas
discussões, ao redor do mundo, acerca de temas correlatos à gravidez e aos
direitos reprodutivos de pessoas com capacidade para gestar. Tal discussão
1 Artigo revisado e atualizado com os debates em torno da viabilização da gravidez também
por pessoas não bináries, originalmente escrito no ano de 2020 e publicado na Revista
Brasileira de Direito Civil RDBCivil, v. 31, n. 01, 2022, com o título “Uma (Re)Leitura
da Presunçã o Mater Semper Certa Est frente à Viabilidade de Gravidezes Masculinas: qual
a solução jurídica para atribuição da paternidade de homens trans que gestam seus próprios
filhos?”.
2 Doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre
em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Advogado e Mediador.
E-mail: manuelcamelo2012@hotmail.com
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ganhou repercussão internacional, sobretudo, em razão da decisão
proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos que, ao derrubar o
precedente firmado no caso Roe VS. Wade (1973), revogou o direito
constitucional ao aborto no país, dando aos estados maior liberdade para
regular a matéria, inclusive impondo restrições.
Nesse contexto, ganhou notoriedade uma discussão travada entre
o Senador Republicano do estado do Missouri, Josh Hawley, e a Professora
de Direito da Universidade de Berkeley, Khiara Bridges, em uma
Audiência no Senado sobre o impacto da decisão que reverteu o citado
precedente naquele país. Na oportunidade, o Senador Hawley, estranhando
a expressão usada por Bridges, pessoas com capacidade para gestar, ao
descrever os impactos do banimento e da imposição de restrições ao aborto,
questiona: Você referiu-se a pessoas com capacidade para gestar. Seriam
elas mulheres?. A professora responde, prontamente, explicando que:
Muitas mulheres, mulheres cis, têm a capacidade para gestar, muitas
mulheres cis não têm a capacidade para gestar. Também há homens trans
que possuem capacidade para gestar, assim como pessoas não bináries3,4
3 Entende-se por pessoas não bináries ou genderqueers aquelas que, independentemente da
expressão afetivo-sexual, não se identificam conforme o binarismo de gênero imposto a
todes no nascimento, podendo não se identificar co m nenhum dos gêneros, com ambos ao
mesmo tempo, transitar entre esses gêneros ou mesmo experimentar outras formas de
vivenciá-lo, para além das ideias de masculino e feminino. Dessa forma, tem-se a figura
das pessoas não bináries, da sigla em inglês, AFAB (“assigned female at birth”, em
tradução livre: designadas mulheres no nascimento) e AMAB (“assigned male at birth”,
em tradução livre: designadas homens no nascimento). A esse respeito explicam Neilton
dos Reis e Raquel Pinheiro que o gênero binário apresenta-se no momento em que os corpos
são colocados no binarismo nas mais diversas áreas do saber: biologia, medicina, direito,
antropologia, psicologia, sociologia etc. A partir disso, os caracteres secundários desses
corpos (seios, menstruação, pomo de adão, vozes graves, pelos faciais e corporais etc.) são
utilizados para determinar o que é ser homem e o qu e é ser mulher, sendo tais construções
reforçadas por diversos campos e saberes sociais. (Cf. REIS, Neilton; PINHO, Raquel.
Gêneros não-binários: identidades, expressões e educação. Revista Reflexão e Ação, Santa
Cruz do Sul, v. 24 , n. 1, p. 7-25, 2016, p. 10-14, passim. Disponível em:
https://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/view/7045/pdf. Acesso em: 27 mar.
2022).
4 Para os fins deste artigo, a expressão em inglês “non-binary people” foi traduzida como
“pessoas ño bináries”. O uso da expressão “não binárie”, por sua vez, dá-se em razão de
uma estratégia linguística de evitar a flexão da palavra no masculino (sufixo -o) ou feminino
(sufixo -a), dando-se-lhe u ma conotação de linguagem neutra, em respeito às
performatividades de gênero especificamente desempenhadas p or tais indivíduos. Sobre o
tema, fala-se que essa modalidade neolinguística “[...] é u ma proposta de criar e
implementar uma a lternativa linguística de natureza inclusiva, neutr a ou sem associa ção
com gêneros para a ssim incluir mulheres e pessoas não-binárias/cisdissidentes” (Cf.

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