Inclusao da Interseccionalidade no ambito dos Direitos Humanos/Inclusion of intersectionality in the scope of human rights.

AutorStelzer, Joana
  1. Introducao

    A busca pela eficacia dos Direitos Humanos nasce na mesma ocasiao em que se estipulam alguns direitos como sendo fundamentais e inalienaveis a todos os seres humanos. A partir da Declaracao Universal dos Direitos Humanos (1949), em um cenario marcado pelas atrocidades cometidas durante as duas Grandes Guerras Mundiais, o discurso dos Direitos Humanos passa a ser incluido em grande parte dos ordenamentos juridicos ocidentais. Junto com o aparecimento de tal discurso, emerge a busca por estrategias e ferramentas capazes de colocar em pratica as garantias fundamentais que tais documentos pretendem assegurar.

    A presente pesquisa surge, portanto, da necessidade constante de reflexao sobre as formas e estrategias para a efetivacao dos Direitos Humanos, para isso perpassa algumas Convencoes sobre Direitos Humanos dedicadas a protecao de grupos especificos como meninas e mulheres e pessoas negras. Desse modo, a investigacao demonstra o potencial da categoria interseccionalidade, pois reconhece que existe na atualidade um complexo de estruturas de opressao (multiplas e simultaneas) que precisam ser analisadas como um sistema de desempoderamento.

    Isso posto, tem-se como problema de pesquisa identificar como o conceito da interseccionalidade pode contribuir ao debate sobre o acesso aos Direitos Humanos e de que modo isso tem se desenvolvido no cenario internacional. Assim, tem-se como objetivo principal demonstrar a relevancia do conceito de interseccionalidade para a construcao teorica e pratica de mecanismos de superacao de desigualdades partindo do reconhecimento da interseccionalidade das opressoes (CRENSHAW, 1991).

    Quanto a natureza, trata-se de pesquisa pura, com abordagem do problema e avaliacao de dados de maneira qualitativa. O metodo de abordagem utilizado foi o hipotetico-dedutivo, conforme Marconi e Lakatos (2003). Os meios foram bibliograficos e documentais, com destaque para as obras de relevantes teoricos (as) e os textos da Convencao para a Eliminacao de todas as Formas de Discriminacao contra a Mulher (CEDAW) e da Convencao Internacional sobre a Eliminacao de Todas as Formas de Discriminacao Racial (ICERD), bem como, as Recomendacoes que os respectivos Comites produzem. A interpretacao foi predominantemente teleologica. Quanto aos fins, a pesquisa apresentou-se de cunho descritivo e explicativo. Afinal, foi possivel reconhecer que a interseccionalidade traz grandes contribuicoes para maior compreensao da complexidade do acesso igualitario das mulheres aos Direitos Humanos. Os resultados foram apresentados em forma de textos.

    Em sintese, estimula-se uma reflexao sobre os sutis avancos identificaveis na inclusao da interseccionalidade no cenario internacional dos Direitos Humanos, para a efetivacao de tais direitos. Tendo como marco teorico Kimberle Crenshaw, Meghan Campbell, Michel Foucault e Joan Scott, almeja-se o avanco na compreensao das potencialidades da interseccionalidade na busca por tornar mais eficaz o acesso aos Direitos Humanos.

  2. Raizes da Interseccionalidade: Genero e Feminismos

    A interseccionalidade pode ser compreendida como ferramenta analitica capaz de contribuir para a solucao de problemas muitas vezes invisibilizados quando se trata do acesso aos Direitos Humanos: "A interseccionalidade e uma conceituacao do problema que busca capturar as consequencias estruturais e dinamicas da interacao entre dois ou mais eixos da subordinacao" (CRENSHAW, 2002, p. 177).

    Esse conceito, surgido em 1989, quando a jurista estadunidense Kimberle Crenshaw o nomeou e ainda e considerado historicamente recente no campo das pesquisas em ciencias humanas e ciencias sociais aplicadas. A producao inicial sobre interseccionalidade ocorreu principalmente nos Estados Unidos por meio de uma articulacao entre conceitos como genero, raca e classe. Isso nao significa dizer, contudo, que no Brasil nao ocorreram desde muito antes do surgimento do conceito da interseccionalidade debates e pesquisas que articulavam essas categorias.

    Vale desde ja destacar que genero sera aqui entendido como uma primeira forma de dar significado as relacoes de poder, tal qual conceituado pela historiadora estadunidense Joan Scott (1995), afinal, genero permite revelar que nao e coerente pensar nas diferencas entre homens e mulheres como algo atemporal e universal. Ou seja, o genero promove inquietacoes cientificamente imprescindiveis sobre os modos como se interpretam as diferencas biologicas, pois sao essas interpretacoes e construcoes sociais os elementos chaves para compreender as relacoes sociais entre homens e mulheres. Genero e, portanto, como se percebem tais diferencas em uma dada sociedade, como se hierarquizam e se constroem como dicotomicas e binarias.

    O conceito de Raca, por sua vez, nao deve ser entendido como foi utilizado do seculo XVI ao XIX, para reproduzir ideias da colonialidade moderna que compreendiam a existencia de uma hierarquia racial. Nesta pesquisa, assim como ocorre quando o conceito raca e utilizado nos Movimentos Negros e por alguns intelectuais das Ciencias Sociais na atualidade, esta se partindo de uma nova interpretacao, tal qual apresentado por Nilma Lino Gomes (2005, p. 45), que se baseia na dimensao social e politica do conceito de raca. A utilizacao do termo raca e uma escolha politica adequada para o Brasil posto que a forma como se da a discriminacao racial no pais, desenvolve-se nao apenas a partir de elementos da identidade etnica de determinado grupo, mas, tambem em razao dos aspectos fisicos possiveis de serem observados na estetica corporal dos membros desse grupo (GOMES, 2005, p. 45). Ou seja, "raca ainda e o termo que consegue dar a dimensao mais proxima da verdadeira discriminacao contra os negros, ou melhor, do que e o racismo que afeta as pessoas negras da nossa sociedade." (GOMES, 2005, p. 45).

    Interseccionalidade surge, portanto, da necessidade de construir uma ferramenta analitica adequada para as pesquisas que envolviam genero e raca, bem como outras categorias que interagem e criam o que a Kimberle Crenshaw denomina como rede de desempoderamento. Para melhor compreender a interseccionalidade faz-se imperativo entender o contexto no qual ela emergiu.

    Para abordar a historia da interseccionalidade e preciso iniciar antes mesmo do conceito ser nomeado por Kimberle Crenshaw. Esse e o entendimento de Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2016), assim como de Anna Carastathis (2016), para quem a interseccionalidade deve ser entendida como representando uma sintese entre os movimentos sociais e o conhecimento academico critico. E comum, no entanto, que os estudos historicos sobre a interseccionalidade ignorem que tal conceito se originou nos Estados Unidos, a partir da luta dos Movimentos Sociais, em especial, daqueles que tinham como protagonistas mulheres negras (1).

    Minimizar tal origem tende a diminuir o potencial transformador e critico da propria interseccionalidade (2). Mesmo no campo academico, e preciso destacar que discussoes que articulavam genero e raca foram predecessoras fundamentais para a construcao do proprio conceito de interseccionalidade, tal qual enfatizado anteriormente quando se destacou a producao de pesquisadoras feministas negras brasileiras, como e possivel identificar, por exemplo, nos textos de Sueli Carneiro (1995; 2003) e de Lelia Gonzalez (1984).

    O termo amplo 'movimento feminista' abriga vasta gama de interpretacoes, correntes, teorias e acoes praticas distintas, todas possuindo como objetivo comum a melhoria da qualidade de vida das mulheres e a reducao das desigualdades. Os caminhos para alcancar tal objetivo, como se sabe, sao multiplos e muitos deles utilizam o conceito de genero enquanto elemento chave para pensar as diferencas socioculturais entre homens e mulheres. Tal conceito e derivado dos debates teoricos de meados do seculo XX, importante por ter sido capaz de, ao mesmo tempo em que revelou as assimetrias e hierarquias nas relacoes entre mulheres e homens, tornou visivel que nao e possivel compreender a amplitude dos diferentes papeis atribuidos aos homens e as mulheres sem um estudo que seja relacional (PEDRO, 2005, p. 88-89).

    Genero, por conseguinte, ira se constituir como conceito altamente relevante na academia e no movimento feminista. Quando Joan Scott publica no fim da decada de 1980 um texto que se tornou basilar para a popularizacao do conceito, ela se dedica a tracar uma distincao entre o sexo (aquilo que e o biologico) e o genero (aquilo que e construido por relacoes socioculturais). A proposta de Scott diferenciou-se dos usos anteriores por dar grande relevancia as relacoes sociais e se baseia na compreensao de que as diferencas percebidas entre homens e mulheres se constroem dentro de relacoes de poder (PEDRO, 2005, p. 86).

    Dessa maneira, Scott ira destacar outra forma de compreender o genero a partir do momento em que apresenta o poder de modo difuso. De acordo com a autora, faz-se necessario substituir a ideia de poder social como algo "[...] unificado, coerente e centralizado por alguma coisa que esteja proxima do conceito foucaultiano de poder, entendido como constelacoes dispersas de relacoes desiguais constituidas pelo discurso nos 'campos de forcas'." (SCOTT, 1995, p.78). Na busca por definir o conceito, Scott elucida que: "[...] o genero e um elemento constitutivo de relacoes sociais baseado nas diferencas percebidas entre os sexos, e o genero e uma forma primeira de significar as relacoes de poder." (SCOTT, 1995, p. 81)

    Portanto, o que se produz como interpretacao sobre o sexo ou o genero, em outras palavras, as distincoes tidas como verdadeiras entre homens e mulheres sao frutos de relacoes de saber e poder. Nesse sentido, Michel Foucault e um dos mais relevantes autores que articulou saber, poder e corpo, em especial nos tres volumes da serie Historia da Sexualidade (2014a; 2014b; 2014c). O filosofo e teorico social frances, tornou-se conhecido por sua compreensao fragmentada e difusa de poder...

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