Incorporação das diretrizes do Banco Mundial para a Atenção Primária à Saúde/Incorporation of the World Bank guidelines for primary health care.

AutorAlves, Pâmela Karoline Lins
CargoARTIGO

Introdução

A conjuntura posta, a partir dos anos 1970, com a implementação do neoliberalismo e do processo de reestruturação produtiva mundial, dentro do conjunto de respostas à crise estrutural do capital, de acordo com Lima (2011), fez com que os organismos financeiros internacionais passassem a desempenhar novas funções no que se refere ao processo de produção e reprodução do capital. Isso aconteceu sobretudo através da defesa intransigente da necessidade dos ajustes estruturais, com ênfase especial na contrar-reforma (1) do Estado e no estabelecimento de parcerias público-privadas e do gerencialismo na políticas sociais, o que vem ocorrendo, não sem resistência, em nome da ideologia neoliberal (BARBOSA FILHO; ROCHA, 2018; LIMA, 2011).

A ação que o Banco Mundial passa a executar diante da conjuntura de hegemonia neoliberal é a de intervenções em parceria com o Fundo Monetário Internacional, impondo políticas de ajustes estruturais que visam ao equilíbrio da balança de pagamentos dos países classificados como endividados. Ou seja, para que um país possa obter um empréstimo via Banco Mundial, ele é pressionado a aceitar algumas orientações advindas do próprio banco como garantia de pagamento, mesmo que essas orientações e condicionalidades signifiquem a extinção de direitos sociais ou a mercantilização das políticas e serviços sociais (BARBOSA FILHO; ROCHA, 2018).

Dessa forma, o presente artigo busca realizar uma análise do papel do Banco Mundial no capitalismo tardio, conceito formulado por Ernest Mandel e utilizado por pensadores marxistas. Buscou-se compreender como o Banco Mundial (2) vem orientando a política de saúde brasileira, além de como o país vem atendendo a essas orientações no que tange à Atenção Primária à Saúde (3).

Para a formulação deste artigo, partiu-se do materialismo histórico e dialético. Para a sua operacionalização, foi realizada uma revisão bibliográfica através do acesso ao trabalho de autores críticos que debatem o tema, tais como Mandel (1982), Behring (2002), Correia (2005), Barbosa Filho e Rocha (2018), Rizzotto e Campos (2016), Deacon (2007) e Pereira (2018). A revisão bibliográfica também foi utilizada para caracterizar as atuais tendências de privatização na Atenção Primária à Saúde, por meio de autores como Massuda (2020), Giovanella, Franco e Almeida (2020) e Bravo e Pelaez (2020). Nas aproximações sucessivas ao fenômeno, também foi realizada a pesquisa documental de leis, decretos e portarias nacionais dos governos de Temer e de Bolsonaro, dentre eles, Portaria no. 2.979/2019 (BRASIL, 2019a), Decreto no. 9.759/2019 (BRASIL, 2019b) e Decreto no. 10.530/2020 (BRASIL, 2020); bem como de publicações do Banco Mundial, entre os quais se destaca o documento Proposta de Reforma do Sistema Único de Saúde brasileiro, publicado em 2019. A análise documental serviu para identificar como as recomendações do Banco Mundial se materializaram nas ações desses governos no tocante à Atenção Primária à Saúde.

O artigo está dividido em três partes. Na primeira, pretende-se, a partir do conceito de supercapitalização das políticas de reprodução social no capitalismo tardio, compreender o papel do Banco Mundial enquanto produtor de consensos em torno de diretrizes e orientações no processo de mercantilização parcial e/ou total dos sistemas e serviços de saúde. Na segunda parte, são analisados documentos que cristalizam as recomendações do Banco Mundial para o SUS, com ênfase na agenda desse organismo para Atenção Primária à Saúde no Brasil. Na terceira e última parte, busca-se caracterizar as ações dos governos de Temer e de Bolsonaro quanto à Atenção Primária à Saúde e como essas medidas governamentais se aproximam das orientações do Banco Mundial.

Banco Mundial como agente global da supercapitalização da política de saúde

Parte-se, nesta pesquisa, das contribuições de Mandel (1982) quanto ao uso do termo supercapitalização. Para isso, faz-se necessário contextualizar o atual período, classificado por ele como "capitalismo tardio", termo utilizado para identificar um momento histórico erigido após a Segunda Guerra Mundial. Segundo o referido autor, a era do capitalismo tardio não é uma nova época do desenvolvimento capitalista; constitui unicamente um desenvolvimento ulterior à época imperialista, de capitalismo monopolista.

No capitalismo tardio, a Terceira Revolução Tecnológica desenvolve as forças produtivas em um ponto em que há a necessidade de expandir o mercado para o exterior, para fazer valer o capital investido. "Há evidências de que as forças produtivas contemporâneas estão rompendo os limites do Estado Nacional, pois a lucratividade mínima para a produção de certas mercadorias envolve séries produtivas proporcionais aos mercados de vários países" (MANDEL, 1982, p. 223).

Nesse sentido, Harvey (2011) analisa que a mundialização do capital, no capitalismo tardio, facilita os fluxos de capital financeiro global, conectando as zonas de excedente de capital com as regiões de escassez de capital. "Demasia de capital excedente na Grã-Bretanha no fim do século XIX? Então, envie-o para os Estados Unidos, a Argentina ou a África do Sul, onde pode ser usado com rentabilidade. Capital excedente em Taiwan? Então, envie-o para criar fábricas que exploram trabalhadores na China ou Vietnã. [...]" (HARVEY, 2011, p. 49).

Diante disso, Mandel (1982) analisa que o processo de concentração e centralização do capital, decorrente do desenvolvimento capitalista, e a tendência à restrição da expansão do mercado interno, que fez com que grandes empresas buscassem se expandir para além do mercado nacional, levaram a uma supercapitalização geral e ao controle permanente das regiões dependentes para garantir novos campos de investimento para as novas exportações de capital.

A supercapitalização é vista por Mandel (1982) como um processo decorrente da migração do capital e da busca por lucro na esfera da reprodução social, até então invisibilizada pelo capitalismo. "A mecanização, a padronização, a superespecialização e a fragmentação do trabalho, que no passado determinaram apenas o reino da produção de mercadorias na indústria propriamente dita, penetram agora todos os setores da vida social" (MANDEL, 1982, p. 271). Ou seja, o que se apresenta com a supercapitalização é a transformação do setor de serviços, inclusive dos serviços sociais, em fontes de lucros ou de valorização do capital estagnado. Com isso, para o autor, a expansão do setor de serviços caracteriza o capitalismo tardio e resume todas as contradições do modo de produção capitalista, compreendendo que

Se faz acompanhar de uma supercapitalização crescente (dificuldades de valorização do capital), de dificuldades crescentes de realização, de desperdício crescente de valores materiais e de alienação e deformação crescentes dos trabalhadores em sua atividade produtiva e em seu âmbito de consumo. [...] A lógica do capitalismo tardio consiste em converter, necessariamente, o capital ocioso em capital de serviços e ao mesmo tempo substituir o capital de serviços por capital produtivo ou, em outras palavras, substituir serviços por mercadorias. (MANDEL, 1982, p. 282-285). Segundo Behring (2002, p. 132), a supercapitalização pode, indiretamente, aumentar a massa de mais-valia nas seguintes circunstâncias: assunção parcial de funções produtivas (exemplo: transportes); aceleração do tempo de rotação do capital produtivo circulante (exemplo: crédito); redução dos custos indiretos da produção (infraestrutura). Além disso, apresenta, também, a privatização da esfera do lazer e da cultura, quebrando experiências coletivas da classe trabalhadora. Nesse sentido, a autora segue a linha de interpretação de Mandel, colocando que

Assim, ao mesmo tempo que o capital ocioso é investido em serviços, estes são transformados em mercadorias, o que indica, mais uma vez, o senso de otimização dos lucros, com o aproveitamento e mercantilização de condições e situações antes imersas na esfera privada e banalizadas pelo cotidiano. (BEHRING, 2002, p. 134). Portanto, com o desenvolvimento capitalista, a supercapitalização avança no sentido de transformar o setor de serviços--que engloba a saúde, a educação, o lazer etc.--em meios de valorização do capital ocioso, aspecto aprofundado com o advento do neoliberalismo. Sob justificativas criadas pela ideologia neoliberal, cresce a mercantilização desses setores, além da implementação de uma lógica que não visa ao fortalecimento de uma esfera pública coletiva e desmercantilizada de políticas de reprodução social, mas, sim, aos interesses privados na valorização do...

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