José Carlos Mariátegui e a Tarefa Latino-Americana

AutorRaphael Lana Seabra
CargoDoutor em Sociologia pela Universidade de Brasília, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho da Universidade de Brasília (GEPT-UnB) e do Núcleo de Estudos Cubanos da Universidade de Brasília (NESCUBA-UnB)
Páginas21-34

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1. Introdução

O historiador peruano Alberto Flores Galindo considerava que o mariateguismo era uma aventura duplamente incompleta, de um lado, pela própria especificidade do raciocínio de José Carlos Mariátegui, de outro, em razão do falecimento prematuro deste intelectual e as formas de apropriações de suas contribuições. Assim, conclui que o mariateguismo é antes de tudo um desafio para a esquerda peruana e latino-americana do que um sólido sustento ideológico. Nos últimos vinte anos, diversos movimentos populares de base indígena com característico histórico de lutas têm ganhado ampla visibilidade, tais como o Exército Zapatista de Libertação Nacional no México, a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador e o Movimento Katarista e Cocalero na Bolívia. Mas, ao mesmo tempo, a adoção de uma estratégia política neodesenvolvimentista por alguns governos sul-americanos — a exemplo do Brasil — têm colocado o problema da terra em novas bases pela ação predatória da exploração dos recursos naturais. Portanto, dados os complexos processos políticos que se desenvolvem hoje na América Latina é imprescindível enfrentar tal desafio, do contrário, o mariateguismo permanecerá restrito aos exercícios de marxologia.

O presente artigo se insere no esforço de refletir as contribuições de José Carlos Mariátegui para além dos comentários elogiosos e/ou centrados exclusivamente na questão indígena presente no conjunto de sua obra, mas precisamente delineada nos Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, senão que buscar os elementos que conferem uni-dade e coerência do pensamento mariateguiano, da tarefa americana a que se propôs este intelectual peruano. Nosso interesse central é demonstrar que, mesmo ao colocar o conjunto de questões em termos da peruanização do marxismo, o cerne das preocupações mariateguianas extravasa as especificidades do país andino, indicando as possibilidades objetivas da revolução socialista em escala continental.

O texto está dividido em três partes. Na primeira parte, buscamos sistematizar a unidade de pensamento e vida, que fazem de seu marxismo singular, mais do que um corpo doutrinário, uma verdadeira filosofia da práxis. Na segunda parte, indicamos as polêmicas travadas entre Mariátegui e a Internacional Comunista, como também a formação deturpada do mariateguismo no Peru. Na terceira e última parte, reconstruímos sua interpretação da realidade peruana, destacando suas contribuições mais originais para o marxismo latino-americano.

2. O marxismo agônico de Mariátegui

Ao regressar ao Peru em 1923, após cerca de três anos e meio de estadia europeia, sobretudo na Itália, o intelectual era suficientemente lúcido sobre seu significado: “Fiz na Europa o melhor da minha aprendizagem. E acredito que não há salvação para a Indo-América sem a ciência e o pensamento europeus ou ocidentais.” Esse período lhe proporcionou os instrumentos necessários para a tarefa autoimposta, claramente expressa em suas próprias palavras, “tenho uma ambição enérgica e declarada: a de contribuir para a criação do socialismo peruano” (MARIÁTEGUI, 2008: 32). Convencido de que a compreensão e o entendimento do valor e da questão indígena em seu tempo, só se

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efetivariam pela via — simultaneamente intelectual e prática — do socialismo, estava também ciente de que seu amadurecimento e consolidação em solo nacional só aconteceriam em meio aos embates peruanos. Dizer que suas concepções marxistas amadureceriam e se consolidariam em meio aos embates resulta da inexistência de organizações proletárias e sindicais, da tradição publicista marxista e de concepções acerca do socialismo, como bem observou José Aricó (1978), a atividade teórico-prática de Mariátegui foi antes fundacional do que dirigente.

Assim, as concepções marxistas mariateguianas foram desenvolvidas na linha de batalha, suas posições e definições amadureceram e se demarcaram em meio aos combates antioligárquicos, literários, indigenistas, anti-imperialistas e pela defesa do socialismo. Estes combates, numa entrevista publicada em 1926, o levaram a afirmar: “sou uma alma agônica, como diria Unamuno (Agonia, tal como Unamuno com muita razão observa, não é morte e, sim, luta. Aquele que combate agoniza).” (MARIÁTEGUI, 2005: 96-97.) A atribuição à Mariátegui de um marxismo agônico1 nos parece fundamental não necessariamente como indicação de uma fundamentação teórica e filosófica concluída, mas por sua peculiar capacidade revolucionária e sua ação político-organizativa (FLORES GALINDO, 1982; ESCORSIM, 2006).

A compreensão de seu marxismo agônico tem de levar em conta três questões indispensáveis. Em primeiro lugar, as específicas interpelações que a realidade exigia de Mariátegui: o confronto com o problema indígena que desde a Conquista era tratado como um problema moral, administrativo, étnico e/ou educacional, quando para Mariátegui claro estava que se tratava de um problema econômico, mais especificamente do problema da terra; o confronto com a “geração dos 900” que, embora tenha se caracterizado por seu interesse no estudo dos problemas peruanos e por sua busca de soluções capazes de alcançar o progresso, não rompeu com as premissas positivistas “do ‘Progresso’, a ‘Ciência’, a ‘Razão’, [que lhes] serviriam para justificar o crescente domínio do capital sobre a sociedade peruana, o papel dirigente da oligarquia ‘ilustrada’ e a subordinação e exclusão dos camponeses índios” (GERMANÁ, 1995: 59); a imperiosidade de estabelecer uma posição política, ideológica e organizativa socialista no contexto do surgimento do movimento anti-imperialista policlassista liderado por Raúl Haya de la Torre da Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA) e a defesa da autonomia organizativa do Partido Socialista Peruano diante das diretrizes da Internacional Comunista para a Amé-rica Latina; a interpretação dos processos revolucionários russos, chineses e mexicanos, prenhes de lições e exemplos para a problemática político-revolucionária peruana, como também a ascensão da contrarrevolução fascista na Europa.

Em segundo lugar, o fato de inexistir no Peru uma tradição organizativa proletária, círculos intelectuais e políticos de debate e difusão do socialismo: tal inexistência exige demasiado esforço, de maneira que Mariátegui se lança ao “estabelecimento de uma casa editora, a direção de Amauta, a criação de Labor, a animação do movimento operário-

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-sindical, a fundação do partido e da central sindical — e os estudos, as investigações, as matérias para revistas e jornais” (ESCORSIM, 2006: 121). Portanto, o vazio teórico-organizativo e o excesso de atividades concentradas num mesmo indivíduo não lhe permitem grandes sistematizações, com exceção do clássico Sete ensaios sobre a realidade peruana. O ensaísmo foi o meio que permitiu a este intelectual intervir em diversos domínios do cenário político, econômico e cultural, como, também, um exercício de observação da vida cotidiana, uma ocasião para refletir sobre os acontecimentos e conectar aspectos da cena nacional à cena internacional e vice-versa. Por outro lado, o ensaísmo mariateguiano responde também aos limites impostos por seu autodidatismo, donde as exigências acadêmicas passam ao largo, daí as citações imprecisas, em alguns casos, a disposição inadequada do marco teórico e apropriação de ideias alheias (FLORES GALINDO, 1982: 59).

Em terceiro e último lugar, a conjugação dos elementos anteriores aponta sua relação peculiar com a teoria. Acreditamos que os fatos elencados acima, muito provavelmente, levaram o autor dos Sete ensaios... à concepção de que o que fez do marxismo uma força social cada vez maior “não foram os pedantes professores alemães da teoria da mais-valia, incapazes de acrescentar qualquer coisa à doutrina, só dedicados a limitá-la, a estereotipá-la; foram, antes, os revolucionários tachados de heresia” (MARIÁTEGUI, 2005: 179). Em relativa confluência com Georg Lukács2 (2001), para Mariátegui, a ortodoxia marxista, não se baseava simplesmente na “fé” e, tampouco, na “exegese” das teses marxianas, senão que o marxismo é:

“um método que se apóia inteiramente na realidade, nos fatos. Não é, como alguns erroneamente supõem, um corpo de princípios de consequências rígidas, iguais para todos os climas históricos e todas as latitudes sociais. Marx extraiu seu método das próprias entranhas da história. O marxismo, em cada país, em cada povo, opera e atua sobre o ambiente, sobre o meio, sem descuidar de nenhuma das suas modalidades.” (MARIÁTEGUI, 2005: 103-104.)

Por considerar o marxismo como método que conduz inevitavelmente à práxis revolucionária e, junto a isso, pensar que entre o marxismo e o pensamento crítico existisse uma indispensável confluência, altamente criativa e renovadora3, Mariátegui foi capaz de apreender corretamente a dialética entre o universal e o específico, entre forma e conteúdo e, a partir daí, conceber o socialismo indo-americano. Adolfo Sánchez Vásquez (1998:50) destaca dois elementos essenciais do marxismo mariateguiano, capazes de sintetizar o discutido até aqui: “1. Sua atenção ao papel da ação, das forças sociais que podem transformar a realidade e 2. Sua preocupação pelas peculiaridades desta realidade concreta, que devem ser, sobretudo, levadas em conta tanto na hora de sua interpretação quanto na de sua transformação prática, efetiva.”

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Michael Löwy está de acordo que Mariátegui considerava a consolidação do projeto socialista peruano como agonia permanente, como luta contínua “contra o tradicionalismo conservador da oligarquia, o romantismo retrógado das elites e a nostalgia do período...

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