Judicial discrimination on the basis of gender identity: a diagnosis/Discriminacao judicial por identidade de genero: um diagnostico.

AutorCortes, Ana de Mello
  1. Introducao (1) (2)

    A Constituicao Federal de 1988 trouxe uma carga significativa de direitos sociais, destacando como um dos fundamentos da Republica Federativa do Brasil, Estado Democratico de Direito, a dignidade da pessoa humana (artigo 1, III) e como um de seus objetivos a promocao do bem de todos sem preconceitos de origem, raca, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminacao (artigo 3, IV).

    Ironicamente, nesse contexto, alguns grupos marginalizados seguem enfrentando violacao cotidiana de seus direitos fundamentais. E o caso de travestis e transexuais (3), pessoas que, por nao se adequarem ao sexo designado para elas no nascimento, sao submetidas as mais diversas formas de discriminacao (4).

    No mercado de trabalho enfrentam exclusao e sujeicao ao mercado informal e a prostituicao (90% das travestis e mulheres transexuais se prostituem segundo dados da Associacao Nacional de Travestis e Transexuais) (5), na familia expulsao, no dia a dia desrespeito aos direitos mais basicos como o uso do nome social e o uso do banheiro adequado a sua identidade de genero (6).

    Em meio a tantas violacoes de direitos, muitas das pessoas pertencentes a esse grupo procuravam o Judiciario objetivando a adequacao do prenome e do sexo de registro aqueles que correspondem ao que vivenciam em seu dia-a-dia, como sao conhecidas, como vivem. Contudo a situacao no ambito do direito nao era menos discriminatoria, de forma que este trabalho pretende mapear o tratamento judicialmente conferido ao grupo no TJSP, diagnosticar e exemplificar, mais uma vez, a discriminacao inconstitucional que se observava antes da recente decisao do STF que permitiu a alteracao do registro civil para pessoas trans por via administrativa e sem exigencia de cirurgia de transgenitalizacao ou outros requisitos patologizantes. (7)

    Embora no direito brasileiro a regra seja a imutabilidade do prenome, a definitividade nao e absoluta. Estao expressas na propria legislacao (Lei de Registros Publicos--Lei no. 6015/73) hipoteses para alteracao do nome civil, desde que de forma motivada. Os principais motivos elencados sao o erro (desacordo com a situacao fatica ou erro de grafia), a exposicao a situacoes vexatorias e a substituicao por apelido publico e notorio, motivos esses aplicaveis ao caso de travestis e transexuais que necessitam alterar o registro. Essas hipoteses com base nas quais este grupo de pessoas buscava por via judicial alterar o registro estao previstas nos artigos 55 [section] unico e 58 da Lei 6.015/1973:

    Paragrafo unico. Os oficiais do registro civil nao registrarao prenomes suscetiveis de expor ao ridiculo os seus portadores. Quando os pais nao se conformarem com a recusa do oficial, este submetera por escrito o caso, independente da cobranca de quaisquer emolumentos, a decisao do Juiz competente. Art. 58. O prenome sera definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituicao por apelidos publicos notorios. No entanto, no Judiciario e muito mais facil para pessoas cisgeneras conseguirem a alteracao com base em argumentos semelhantes. (8) De forma que sao questionaveis os motivos que levam a esse resultado bem como os requisitos exigidos de pessoas trans que nao o sao para as demais.

    Diante da relevancia do tema e da necessidade social de resolucao, diferentes vias foram propostas para sanar a discriminacao em pauta. Em ordem cronologica: a ADI 4.275, proposta em 2009 pela Procuradoria Geral da Republica, o RE 670.422 (9) originario do Rio Grande do Sul e protocolado em 2012 que teve repercussao geral reconhecida por maioria pelo STF em setembro de 2014 e o PL 5002 (Lei Joao W. Nery, Lei de Identidade de Genero) proposto em 2013 pelo deputado Jean Wyllys do PSOL/RJ e pela deputada Erika Kokay do PT/DF.

    Paralelamente, o STJ decidiu, em 2017, pela possibilidade de alteracao do registro civil para transexuais sem exigencia de cirurgia de transgenitalizacao (10) e, em janeiro de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou aos paises membros da OEA (Organizacao dos Estados Americanos), entre eles o Brasil, a criacao de mecanismos para a retificacao do registro civil de pessoas trans (11).

    O questionamento comum a todas as vias era a exigencia da realizacao de cirurgia de redesignacao de sexo para que o prenome e o sexo pudessem ser modificados no registro, uma exigencia que nao se encontra na Lei de Registros Publicos ou qualquer diploma legal e que este trabalho mostra, por meio de pesquisa empirica envolvendo os casos de alteracao de prenome em um periodo de cinco anos (de 01/01/2010 a 31/12/2014) no Tribunal de Justica de Sao Paulo, como discriminava e afetava negativamente a vida da coletividade de pessoas trans.

    Finalmente, nos dias 28 de fevereiro e 1 de marco de 2018 o STF se posicionou sobre o tema, resolvendo nao so a questao da exigencia discriminatoria do requisito da cirurgia de transgenitalizacao, como tambem a exigencia de outros requisitos patologizantes muito frequentemente demandados (como sera possivel ver nos resultados da pesquisa empirica), alem de garantir possibilidade de realizar a alteracao por via administrativa, diretamente no cartorio, e estender os direitos a todas as pessoas trans por meio da utilizacao do termo guarda-chuva "transgeneros". (12)

    No ambito da Medicina a transexualidade ainda e patologizada, como era a homossexualidade ha cerca de 40 anos, o que implica a inclusao em documentos oficiais para diagnostico como o Manual de Diagnostico de Doencas Mentais (DSM) e a Classificacao Internacional de doencas (CID). Isto e, embora o DSM-V tenha alterado a visao sobre a transexualidade da anterior classificacao "transtorno de identidade de genero" para a atual "disforia de genero", a alteracao e uma solucao intermediaria que nao despatologiza completamente a transexualidade (13). Quanto a CID, e provavel que sua versao atualizada seja submetida a Assembleia Mundial da Saude em maio de 2019 e entre em vigor em 2022, os debates indicam que o termo sera substituido por "incongruencia de genero" (14), contudo, ate o momento, a versao mais recente e a CID 10 que mantem a classificacao como "transexualismo" (codigo F640).

    Esses documentos e a patologizacao em si provocam uma universalizacao da transexualidade, como se tivesse sintomas semelhantes em qualquer lugar do mundo e como se existisse um modelo de transexual verdadeiro a ser reconhecido. (15) Existem normas de genero que estabelecem uma ligacao entre sexo, orientacao sexual, desejo e os generos culturalmente constituidos, nesse contexto, o que foge a essas normas nao e visto como inteligivel ou real e tem ate mesmo a possibilidade de sua existencia questionada. (16)

    A visao medicalizante do genero sem quaisquer testes clinicos, utilizando apenas verdades socialmente estabelecidas, estereotipos de genero, patologiza uma experiencia identitaria. Essa patologizacao e um instrumento que mantem as performances de genero que fogem ao padrao hegemonico marginalizadas. (17) Afinal o que e ser homem ou mulher? O que pode responder a essa pergunta alem dos padroes e estereotipos normalmente utilizados? Medicas e medicos, juizas e juizes seriam pessoas aptas a decidir se alguem e suficientemente homem ou mulher para poder se chamar de transexual de verdade ou alterar seu registro?

    Os padroes e estereotipos de genero sao impostos a todas as pessoas, uma vez que desde a descoberta do sexo de um bebe ha uma serie de expectativas sobre seus gostos, seu comportamento e sua sexualidade. (18) Desta forma os corpos ja nascem maculados por essa imposicao, nossos desejos e papeis nao sao determinados pela natureza. A experiencia das pessoas trans revela que essa designacao de genero que ocorre no nascimento nem sempre e suficiente para garantir uma identidade, visto que pode nao ser adequada a identidade de genero.

    Esses padroes sexistas de genero, ainda muito presentes e marcantes, que dizem o que e uma mulher de verdade e o que e um homem de verdade refletem no que se espera de uma pessoa para considera-la transexual de verdade. Estas sao as concepcoes que orientam os medicos e profissionais de saude em geral ao diagnosticar e tratar pessoas trans (19) e essa visao, como esta pesquisa pretende demonstrar, tendia a predominar tambem no direito, uma vez que nao so desembargadores e desembargadoras fazem parte de uma sociedade marcada por esses padroes como tambem predominava no direito essa visao medicalizante da transgeneridade.

  2. Metodologia

    Na pesquisa realizada, foi construida a conclusao da existencia de discriminacao a partir da fundamentacao empirica (20), as categorias em que os dados estao organizados e descritos partem tambem da observacao empirica, caracterizando uma pesquisa predominantemente indutiva. (21) Os dados foram obtidos por meio de uma analise documental das decisoes do TJSP e as informacoes extraidas da documentacao e da relacao dessa documentacao com o problema de pesquisa possibilitaram a construcao de uma interpretacao sobre a existencia de discriminacao judicial. (22) Essa forma de estabelecer proposicoes teoricas a partir da fundamentacao empirica e caracteristica da chamada teorizacao fundamentada nos dados. (23)

    Para a realizacao da pesquisa, foram selecionados e analisados 111 acordaos do Tribunal de Justica de Sao Paulo por meio do mecanismo de pesquisa disponibilizado no site do Tribunal. O procedimento metodologico utilizado e apresentado a seguir.

    O periodo considerado para a pesquisa foi de cinco anos, comecando em 01/01/2010 e terminando em 31/12/2014. A Primeira lista de acordaos com o espaco amostral foi feita em outubro de 2014 e a definitiva em janeiro de 2015, a fim de incluir os acordaos restantes para o periodo em pauta. Como anexo da pesquisa estabeleci uma lista que determina o espaco amostral, na qual os acordaos estao ordenados por data de publicacao.

    A escolha do Tribunal de Justica do Estado de Sao Paulo para a pesquisa se deu especialmente porque foi constatado em pesquisa anterior feita junto...

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