Os juristas e as politicas da justica criminal: quem tem medo da esfera publica?/Jurists and politics of the criminal justice: who is afraid of the public sphere?

Autorde Mello Prando, Camila Cardoso

Introdução

Em São Paulo, no dia 29 de agosto de 2017, um homem foi preso em flagrante depois de ejacular em uma mulher dentro de um ônibus. Dentro do prazo das 24 horas, o juiz, responsável por avaliar a legalidade da prisão bem como o pedido de prisão preventiva, entendeu não haver elementos caracterizadores do tipo penal de estupro e classificou a conduta como contravenção de importunação ao pudor (art. 61, Lei 3688/1941). A autoridade judicial afirmou que:

O crime de estupro tem como núcleo típico constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Na espécie, entendo que não houve constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco de ônibus quando foi surpreendida pela ejaculação do indiciado (Processo 0076565-59.2017.8.26.0050) A decisão gerou reações de reprovação nas redes sociais e em movimentos sociais feministas. Algumas manifestações reprovaram o fato de que o homem não houvesse sido preso preventivamente. Outras, discordaram do sentido de violência e grave ameaça atribuído pelo juiz ao caso concreto. (1)

Juristas, muitos deles alinhados ao campo crítico das ciências criminais, manifestaram-se nas redes sociais e em publicações de sites de direito especializados. Em uma das argumentações mais sustentadas, afirmaram que a decisão era válida porque, em conformidade com a motivação da decisão, violência e grave ameaça são elementos típicos que não se adequam ao fato realizado pelo homem. De modo que qualquer interpretação diversa feriria o princípio da legalidade penal. Em outro grupo de argumentação conectado à primeira, alguns juristas atribuíram a qualificação de punitivistas às manifestações críticas promovidas por movimentos feministas, alegando que as feministas não aprenderam a lição da crítica criminológica, que aponta para os custos da violência e da exclusão realizados pelo funcionamento do sistema penal. (2)

Nessas manifestações, os juristas reuniram, apressadamente, na mesma crítica, os pedidos por prisão ao homem do caso do ônibus e as disputas sobre os sentidos de violência e grave ameaça contidos no tipo penal de estupro, além de pressuporem que tais sentidos produzidos pela doutrina e jurisprudência, e não previstos nos dispositivos legais, são a-históricos, desconectados das relações desiguais de poder e livres de disputas. Isto me provocou a pensar e produzir sobre dois eixos. Um mais específico, que visa compreender os sentidos de violência e grave ameaça produzidos e naturalizados pela doutrina e pela jurisprudência brasileiras (3). E outro, de fundo, sobre o qual tratarei neste texto, que indaga quais premissas ocultas os discursos dos juristas sustentam quando desqualificam as demandas direcionadas à política da justiça criminal por parte de movimentos feministas e de movimentos sociais em geral.

Para empreender essa pergunta investigo a relação contemporânea entre os juristas e a esfera pública no campo das políticas de justiça criminal. Esse recorte me incumbiu de duas tarefas preliminares: a primeira, compreender o eixo argumentativo que trata sobre as teses do punitivismo e da "esquerda punitiva" adotado por parte dos juristas do campo crítico; a segunda, aproximar-me do conceito de esfera pública proposto por teorias críticas da democracia, tarefa que fiz por meio da tese de Nancy Fraser, apresentada adiante. Por meio desses campos, lancei a hipótese de que as ordens de raça, gênero, classe e sexualidade condicionam a lente dos juristas na compreensão sobre as articulações dos movimentos sociais na política da justiça criminal.

No texto, apresentarei, na sequência, a) a construção da etiqueta da "esquerda punitiva", num campo de crítica ao punitivismo, bem como suas limitações de compreensão sobre o fenômeno dos movimentos sociais em relação à questão criminal; b) a presença dos contrapúblicos subalternos na esfera pública no Brasil; c) a posição dos juristas na esfera pública e na produção da política da justiça criminal.

  1. A tese do giro punitivo e os movimentos de vítimas nas Ciências Criminais no Brasil

    Nas Ciências Criminais, em especial no campo da Crítica Criminológica, vem se sustentando que a relação entre o público e o sistema de justiça criminal está organizada em torno de uma cultura punitiva. Tal premissa conta com um acúmulo teórico da Sociologia da Punição que relaciona o aumento da punitividade a partir das décadas de 1970 e 1980 com a produção de uma cultura do controle, com arranjos de punição centrados na figura da vítima (Garland, 1999; 2008) e com a reestruturação do Estado em Estado Penal no neoliberalismo (Wacquant, 2001, 2009). A crise de legitimidade das democracias ocidentais bem como a produção de insegurança social, articulada a uma demanda por um Estado forte via sistema penal, são identificadas como pano de fundo da virada punitiva.

    Embora sejam variados os autores que abordaram esse tema sob perspectivas distintas, foram as teses de Garland (que circula especialmente no campo do que se denomina no Brasil de Sociologia da Violência) e de Wacquant (que circula predominantemente no campo das Ciências Criminais e da Criminologia Crítica) as que mais foram apropriadas pela academia que se dedica a compreender a questão criminal no Brasil. Suas teses fundadas em estudos empíricos realizados no Norte têm sido reproduzidas em pesquisas no Brasil como premissas inquestionáveis. Apenas recentemente alguns estudos vêm perguntando pelo uso indiscriminado da categoria neoliberalismo, cultura punitiva ou Estado Penal, largamente usadas nas hipóteses explicativas para os fenômenos político criminais do Sul (Carrington, Hogg, Sozzo, 2017; Brandariz-García, Sozzo, 2014; Koch, 2017).

    Uma das teses sobre a virada punitiva dedica-se a compreender a emergência da vítima no cenário do aumento da punitividade e das demandas por punição (Garland, 1999). Mas como nos noticia Koch (2017), algumas pesquisas qualitativas têm demonstrado que há muitas nuances nas narrativas que tem sido lidas como punitivistas, pondo em xeque assim a ideia de uma demanda por punição generalizada e uniforme.

    1.1 As três dimensões de vítimas nas teses sobre o giro punitivo

    A vítima como categoria associada ao giro punitivo surge ambiguamente, ora como aquela que produz novas demandas ao sistema de justiça criminal, ora como aquela em nome da qual se realiza o aumento da punitividade. No primeiro caso, Walklate reúne literatura empiricamente referenciada em países do Norte, na qual sublinha características específicas surgidas com os movimentos de vítimas nos anos 1960 e 1970, inspirados em políticas identitárias, que passaram a interpelar as políticas públicas desde uma narrativa da dor e do trauma (Walklate et al, 2018). Na tese de Garland (1999), a emergência da vítima está mais estritamente vinculada à cultura do controle e às situações nas quais os poderes legislativos e executivos a utilizam como dispositivo retórico para justificar uma política de expansão penal. O que nos sugere que a vítima na literatura criminológica e na sociologia da punição deve ser tratada como uma categoria nativa, mas também explicativa, que possui camadas distintas. O uso sobreacoplado dessas camadas compromete o olhar analítico sobre o fenômeno dos movimentos sociais nas demandas por políticas de justiça criminal.

    Em primeiro lugar estão as vítimas entendidas como dispositivos retóricos em nome da quais se promovem políticas no sistema criminal. Em geral, elas surgem no discurso político e jurídico, buscando produzir ressonâncias de empatia com uma vítima não necessariamente concreta. Koch (2017) nos lembra, por exemplo, que a emergência da vítima no cenário político se realiza com a ascensão do Partido dos Trabalhadores na Inglaterra, o qual passa a promover o discurso de que é preciso pensar nas vítimas dos crimes para promover políticas penais e não apenas produzir críticas ao controle penal. Eleitoralmente o Partido dos Trabalhadores mobilizava a ideia de que as vítimas ainda não haviam sido foco de políticas de controle da criminalidade porque essas políticas eram produzidas por grupos de elite que não estavam afetados pelo crime e pela violência. No campo acadêmico, o realismo criminológico foi uma das vertentes deste momento na Inglaterra, e produziu pesquisas sobre políticas de prevenção e de controle da criminalidade.

    No discurso jurídico, essa vítima também emerge rearticulando as funções da pena, que passariam não mais a convocar a ideia de um indivíduo perigoso a ser corrigido, mas sim a ideia de uma vítima que necessita da resposta punitiva para ser protegida (Simon, 2009). Não se trata de uma vítima concreta, individualizada, mas da apresentação de um grupo de sujeitos representados homogeneamente como "crianças", "idosos", "proprietários", racializados como brancos, a partir dos quais Judiciário, Executivo e Legislativo se manifestam para legitimar suas políticas de expansão penal. (4)

    Em segundo lugar estão as vítimas figuradas como dispositivos legais no processo penal e as vítimas em carne e osso que experimentam o processo criminal. Neste caso, defender a tese do aumento da punitividade associado ao aumento de dispositivos processuais penais que trazem a vítima para o sistema de justiça criminal depende de produções sistemáticas de pesquisa. Alguns estudos empíricos no campo da violência doméstica tem aberto caminhos para pensar sob diversas dimensões. As pesquisas sobre a dimensão de como as vítimas vêem o sistema de justiça criminal e o que esperam dele têm revelado que as mulheres expressam prevalentemente desejo de que ameaça e a violência cessem, sem demandas punitivas acopladas. Há também pesquisas sobre a representação que os atores do sistema de justiça têm das vítimas, e análises sobre como os atores do sistema de justiça criminal articulam tais representações para teses de arquivamento, denúncia, absolvição e condenação. Em...

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