Justa causa do empregador e a dignidade do trabalho em face do sistema constitucional de proteção ao trabalho

AutorWilson Roberto Theodoro Filho
Páginas383-389

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A Consolidação das Leis do Trabalho trata da possibili-dade de rescisão do contrato de trabalho por justa causa em seus arts. 482 e 483. Paralelamente à lista de motivos que ensejam a dispensa motivada levada a cabo pelo empregador, elencados no primeiro dos artigos mencionados, o texto celetista igualmente preconiza a figura da rescisão indireta do contrato de trabalho, ou seja, a possibilidade de o empregado, em face de conduta ilícita do empregador, considerar seu contrato de trabalho rescindido, a depender de posterior confirmação judicial1. Se, por um lado, a dispensa motivada implica o afastamento do pagamento da maior parte das verbas rescisórias trabalhistas2, a rescisão indireta do contrato de trabalho por justa causa do empregador equivale, em seus efeitos patrimoniais e jurídicos, à dispensa sem justa causa do empregado, e não a um simples pedido de demissão3.

A despeito da aparente semelhança e equivalência entre as figuras da dispensa por justa causa do empregado e da dispensa por justa causa do empregador, tais modalidades de rescisão do contrato de trabalho devem ser diferentemente interpretadas em face dos princípios do Direito do Trabalho e dos da Constituição Federal de 1988, especialmente no momento de sua aplicação judicial à situação concreta da rescisão contratual. Nesse sentido, a mera adaptação do raciocínio judicial e dos critérios tradicionalmente empregados na análise da configuração da justa causa do empregado é inadequada, à luz da atual ordem constitucional, para a análise da caracterização ou não da justa causa do empregador.

Nos termos do art. 483 da CLT, as seguintes causas ensejam a rescisão indireta do contrato de trabalho:

Art. 483. O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando:

  1. forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato;

  2. for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo;

  3. correr perigo manifesto de mal considerável;

  4. não cumprir o empregador as obrigações do contrato;

  5. praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e boa fama;

  6. o empregador ou seus prepostos ofenderem-no fisicamente, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;

  7. o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar sensivelmente a importância dos salários.

    É interessante comparar a lista de causas ensejadoras da justa causa do empregador com os motivos que ensejam a dispensa por justa causa do empregado:

    Art. 482. Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:

  8. ato de improbidade;

  9. incontinência de conduta ou mau procedimento;

  10. negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço;

  11. condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena;

  12. desídia no desempenho das respectivas funções;

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  13. embriaguez habitual ou em serviço;

  14. violação de segredo da empresa;

  15. ato de indisciplina ou de insubordinação;

  16. abandono de emprego;

  17. ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;

  18. ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;

  19. prática constante de jogos de azar.

    Grosso modo, pode-se observar uma certa similitude entre as alíneas dos arts. 483 e 482 da CLT, ainda que, em algumas hipóteses, sob uma perspectiva antagônica e contrária. Assim, por exemplo, as alíneas "e" e "f" do art. 483 correspondem à lógica das alíneas "j" e "k" do art. 482, bem como as alíneas "a" e "b" do art. 483 ilustram circunstâncias inversas àquelas preconizadas nas alíneas "a", "b", "c", "e", "g" e "h" do art. 4824, na medida em que se relacionam a condutas que violam quer o ordenamento jurídico, quer os parâmetros contratuais no interior dos quais se desenvolve a relação de emprego.

    Tanto a jurisprudência quanto a doutrina reconhecem que a possibilidade de um empregado ser dispensado por justa causa relaciona-se ao poder disciplinar do empregador, e depende do preenchimento de requisitos objetivos, subjetivos e circunstanciais à aplicação da penalidade de dispensa5.

    Do ponto de vista objetivo, a conduta faltosa do empregado deve corresponder ao tipo previsto no ordenamento jurídico, bem como deve ser grave o suficiente para legitimar a justa causa. Na perspectiva subjetiva, o empregado a

    ser dispensado deve ser o autor da conduta faltosa, além de ter agido com dolo ou culpa. Por fim, circunstancialmente, é necessário aferir se a dispensa foi adequada e proporcional à conduta faltosa, se houve singularidade, imediaticidade e inalterabilidade na punição, bem como se o poder disciplinar foi exercido de modo pedagógico e lícito6.

    Tais critérios, que na hipótese da dispensa por justa causa do empregado constituem importante fator de proteção juslaboral e de manutenção da continuidade da relação de emprego, são usualmente aplicados, ainda que de modo adaptado, para a caracterização da justa causa do empregador7.

    Entretanto, os parâmetros em questão se mostram absolutamente incompatíveis com a função jurídica e política que justifica a existência da justa causa do empregador. Para se compreender tal questão, contudo, é necessário avaliar em que medida a Constituição Federal de 1988 elevou os princípios do Direito do Trabalho à esfera de Direitos Fundamentais.

    Apesar de a Constituição Federal de 1988 não ter sido o primeiro texto constitucional brasileiro a contemplar normas de Direito do Trabalho8, é nela em que o ramo justrabalhista é amplamente reconhecido em sua dimensão de direito fundamental de segunda geração, interconectado ao sistema de garantias e princípios constitucionais mais amplo. Nessa perspectiva, não só o Direito do Trabalho é erigido ao patamar constitucional, como sua interpretação e aplicação tornam-se necessariamente vinculadas aos demais princípios que perpassam a estrutura de direitos fundamentais na Constituição.

    Dessa maneira, se, por um lado, os arts. 6º, 7º, 8º e 9º possuem hoje o status de direitos fundamentais sociais, por outro, encontram-se diretamente ligados ao conjunto total de direitos fundamentais constitucionalizados, especialmente

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    em vista da co-originalidade lógica9 subsistente entre estes. Interessa, em particular, compreender que o valor social do trabalho preconizado no art. 1º, IV, o direito social ao trabalho previsto no art. 6º, e a relação de trabalho protegida estipulada pelo art. 7º, I, somente fazem sentido na atual estrutura constitucional brasileira quando contemplados em conexão com a dignidade da pessoa humana prevista no art. 1º, III.

    Ao lado da liberdade e da igualdade, a dignidade hoje pode ser vista como um dos metaprincípios em torno dos quais se estrutura tanto a Constituição quanto o Estado Democrático de Direito10. Não há elemento do ordenamento jurídico, seja constitucional, seja infralegal, que possa ser adequadamente compreendido e interpretado sem levar em conta o princípio da dignidade humana. Isto porque o efetivo sentido da dignidade implica a necessidade de correspondência material e formal da interpretação jurídica acerca do ordenamento jurídico com o significado constitucional da dignidade11. Em outros termos, a interpretação formalmente válida do ordenamento jurídico, que, todavia, destoe da premissa da dignidade humana, é constitucionalmente inválida.

    Na hipótese específica do trabalho e da relação de emprego, a dignidade revela-se em uma dimensão dupla: em primeiro lugar, o trabalho constitucionalmente protegido deve ser necessariamente trabalho digno, a relação de emprego protegida prevista no art. 7º, I, é aquela que possibilita o desenvolvimento do trabalho digno ao longo do contrato12; em segundo lugar, não há trabalho digno se, no correr da relação de trabalho ou de emprego, as demais esferas de incidência individual da dignidade não forem igualmente respeitadas e promovidas13.

    É nesse contexto que a problemática acerca da justa causa deve ser apreciada. Não há dúvida de que os critérios de avaliação da configuração da justa causa do empregado, inserida no panorama desequilibrado do exercício do poder disciplinar, são fundamentais para garantir a dignidade do trabalho e a dignidade individual do trabalhador, ao menos de um ponto de vista patrimonial. A reversão judicial da dispensa por justa causa indevidamente aplicada pelo empregador constitui momento no qual se reconhece a extrapolação dos limites legais do exercício do poder disciplinar, que, ao "marcar" o empregado com a justa causa, caracteriza ilícita violação a sua dignidade individual. Os requisitos de aplicação da justa causa do empregado, portanto, constituem limites que visam preservar, ao menos minimamente14, a dignidade individual do trabalhador dispensado.

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    A justa causa do empregador, possivelmente com mais razão ainda, serve igualmente para preservar a dignidade do trabalho e a dignidade individual do trabalhador, especial-mente por depender da iniciativa do empregado, a parte reconhecidamente mais frágil da relação laboral. Os requisitos tradicionalmente utilizados para a definição da justa causa do empregado, contudo, se mostram inadequados para delimitar a legitimidade da rescisão indireta porque, em face da digni-dade do trabalho e da dignidade individual do empregado, as duas modalidades de justa causa são situações assimétricas muito diferentes entre si.

    Na hipótese de caracterização indevida da justa causa do empregado, é o ato do empregador que encerra a relação de emprego, é a...

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