Justiça reprodutiva e democracia: reflexões sobre as estratégias antigênero no Brasil/Reproductive justice and democracy: reflections on anti-gender strategies in Brazil.

AutorRossi Louzada, Gabriela Rondon
CargoARTIGO

Não é novidade que o sintagma "ideologia de gênero" é um instrumento de mobilização política. A emergência do termo no magistério católico já está bem documentada no campo dos estudos de gênero e é conhecido de organizações e ativistas feministas e LGBTI que atuam com advocacy internacional de direitos humanos. Usualmente se localiza o início de seu uso na elaboração da contraestratégia do Vaticano após a Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento de 1994, no Cairo, para opor-se à consolidação dos direitos sexuais e reprodutivos no panorama internacional (BIROLI; MACHADO; VAGGIONE, 2020; CORRÊA, 2018; GIRARD, 2007).

Pesquisadores latino-americanos identificam como o continente esteve desde o início no centro das elaborações estratégicas dessa renovada ofensiva antigênero por parte da Igreja Católica, como demonstra a publicação, em 1998, do primeiro documento eclesiástico sobre o tema: uma nota da Conferência Episcopal do Peru intitulada La ideologia de género: sus peligros y alcances (JUNQUEIRA, 2022). A narrativa mais usual sobre a construção da ideologia de gênero como sintagma de ataque segue, portanto, uma lógica do que se nomeia como backlash: teria surgido como reação da Igreja e outros setores reacionários de sociedades cristãs contra os avanços progressistas dos feminismos e dos movimentos de diversidade sexual. Backlash, como define Alba Ruibal (2022), é o conceito utilizado comumente para narrar esses fenômenos de reação contra o avanço de reivindicações de igualdade, na forma de contramovimentos ou contrarreformas.

Na América Latina, a narrativa do backlash foi reforçada, uma vez que os primeiros episódios de uso do termo "ideologia de gênero" foram identificados a partir dos anos 2010, quando muitos países da região estavam sob governos de partidos de esquerda e registravam avanços na proteção de direitos das mulheres e população LGBTI, em particular com relação ao casamento igualitário e às leis mais protetivas ao direito ao aborto. É comum a narrativa de que, em reação a esses avanços, por exemplo, o uso do termo gênero foi rejeitado em 2011 por parlamentares reacionários durante a discussão do plano nacional de educação no Paraguai (CORRÊA; PATTERNOTE; KUHAR, 2018). No Brasil, foi cancelado o programa educacional Escola sem Homofobia, intitulado pejorativamente de "kit gay", o qual foi chamado de "propaganda de opção sexual" e sofreu ataques da bancada evangélica e de grupos católicos no Congresso Nacional (CAMPARENUT, 2011). Também é lembrado com frequência que, em 2013, o presidente do Equador Rafael Correa mencionou em seu programa televisivo que a "ideologia de gênero" era um instrumento para "destruir famílias" (MISKOLCI; CAMPANA, 2017). Em 2016, registra-se que o discurso antigênero foi decisivo para a derrota dos acordos de paz na Colômbia (PRADO; CORRÊA, 2018).

Já em outras partes do mundo em que também cresciam ataques sob o sintagma de "ideologia de gênero" nos anos 2010, a tese de backlash era menos observável. Ativistas e pesquisadoras apontam que em países como Polônia, Ucrânia ou Rússia, o movimento antigênero ganhou tração mesmo que as vitórias em proteção a direitos das mulheres ou das pessoas LGBTI não fossem particularmente expressivas, nem esses movimentos sociais considerados significativamente populares nesses países. Assim, para essas autoras, a perspectiva de um contra-ataque do patriarcado ou da heteronormatividade não poderia explicar integralmente o fenômeno. Seria preciso, em realidade, compreender como gênero funcionou como uma "cola simbólica" para mobilizar a frustração com promessas não cumpridas das democracias liberais e do paradigma de direitos humanos (KOVÁTS; PRIM, 2015).

Esses movimentos reacionários, frequentemente nacionalistas e de bases teocráticas, se mobilizam por uma tentativa de recristianização da esfera pública, que é instrumental à permanência de outras estruturas de poder (BROWN, 2019). Seguindo o que apontaram autoras como Melinda Cooper (2017) e Wendy Brown (2019), os ataques à "ideologia de gênero" ou a demandas de justiça reprodutiva, como o direito ao aborto, pressupõem políticas de proteção a um determinado modelo de família que não só normaliza uma concepção específica de gênero e sexualidade, como também organiza relações de trabalho, classe e raça. A família como unidade organizativa básica dessa sociedade é não só um núcleo heterossexual bem definido, como é autossuficiente em termos de subsistência, acesso a recursos e cuidado, conforme determinações específicas de quem pode exercer trabalhos precarizados ou domésticos. Essa família é a alternativa a um Estado de bemestar social inexistente ou em crise.

Assim, o processo de precarização socioeconômica em distintos países, no curso dos anos 2010, ainda possivelmente identificáveis como efeitos da crise econômica de 2008, por exemplo, seriam enquadradas por líderes autoritários antigênero como, na realidade, decorrentes de uma crise social pela globalização, "desestruturação das famílias", "inversão de valores" e corrupção, econômica e moral, mais do que reflexos da desestruturação do sistema financeiro. Assim, esse enquadramento passou a ser muitas vezes utilizado por grupos reacionários para acompanhar medidas de austeridade e o desmonte de políticas por justiça reprodutiva e justiça social.

Em países onde a desigualdade social é expressiva e não há Estados de bem-estar social fortes, como no Leste Europeu, mas também na América Latina, crises socioeconômicas podem estar devastando o senso de futuro para muitos grupos que têm acesso apenas a trabalhos precários e políticas sociais insuficientes, afetando também profundamente sua subjetividade, mobilização e participação política (KOVÁTS, 2018; MACHADO; SCALCO, 2020). Nesse cenário, o apelo a narrativas tradicionais do gênero inspiradas pelo patriarcado garantiria um sentido de pertencimento e privilégio dentro da família, se a vida pública está precarizada--especialmente para homens, mas também em menor medida a alguns grupos de mulheres. Por essa perspectiva, o recurso de ataque à "ideologia de gênero" na política não seria apenas efeito de um possível backlash, mas, principalmente, faria parte da resistência inercial de regimes políticos e históricos do patriarcado que não só rechaçam os avanços propostos pelos movimentos favoráveis à justiça reprodutiva e aos direitos humanos, como dependem da reprodução de determinadas hierarquias sociais para se manterem.

No cenário mais recente, pesquisas já demonstraram um projeto intencional de aniquilamento das populações consideradas indesejáveis durante a pandemia da Covid-19 (BRITO; SANTOS; REGO, 2022; CEPEDISA; CONECTAS, 2021). Apesar do contexto de retrocessos e precarização das políticas por igualdade, as lutas feministas que se utilizam de uma mirada interseccional e antirracista estiveram ao lado de outros atores da sociedade civil para exigir do Estado brasileiro respostas para garantia de direitos fundamentais violados durante a pandemia. Esses movimentos se inspiram em princípios éticos da justiça social, solidariedade e cidadania para refletir sobre a construção de respostas na emergência sanitária para a construção de um futuro pós-pandêmico (BRITO; SANTOS; REGO, 2022).

Justiça reprodutiva, conceito inicialmente proposto pelo movimento de mulheres negras estadunidenses (ROSS, 2006), torna-se caro aos movimentos feministas do sul global, especialmente considerando que as mulheres são as principais responsáveis pela reprodução biológica e social da vida. Quanto maiores os marcadores de desigualdade, sejam eles de raça, gênero, deficiência, geografia ou tantos outros, mais desproporcionais são os impactos na vida dessas mulheres e meninas para garantir condições dignas para elas e suas famílias durante as emergências de saúde pública.

Nesse sentido, podemos entender que justiça reprodutiva também está no centro dos debates sobre justiça social e democracia e foi um conceito que organizou diversas das demandas da sociedade civil durante a pandemia: desde o auxílio emergencial, passando pela priorização das vacinas para trabalhadoras precarizadas da economia do cuidado, até o debate sobre o acesso ao aborto para vítimas de violência sexual. Todas essas demandas eram, também, parte de um debate sobre democracia, na medida em que esta também deve levar em consideração o desenvolvimento social, político e legal para que as instituições públicas sejam capazes de desenvolver e apoiar a justiça social para a igualdade numa sociedade livre de discriminações

(MACKENZIE, 2014). Todas essas foram, também, sistematicamente atacadas pelo governo federal brasileiro.

Nosso argumento é que estes ataques se vinculam, não surpreendentemente, a políticas de austeridade enquadradas como inevitáveis, reforçadas com narrativas reacionárias para o gênero, na medida em que precisam pressupor a privatização do cuidado, o controle da sexualidade e a estabilização de um determinado modelo de família para serem minimamente viáveis. Ou seja, dependem da...

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