Justiça sem mérito
Autor | Ivan Alemão |
Ocupação do Autor | Doutor em Sociologia pelo PPGSA da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008) |
Páginas | 53-63 |
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A judicialização significa a transferência do conlito social para o judiciário (SORJ, 2000), dando início ao ativismo judicial ao mesmo tempo em que as autoridades administrativas adotam procedimentos semelhantes aos judiciais (TATE & VALLINDER, 1995; CASTRO, 1997 etc.). Representa a crescente invasão do direito na organização da vida social e política (L.W.VIANNA, 1999 e 2002). O surgimento de novos direitos difusos e coletivos, de novos procedimentos judiciais como o juizado de pequenas causas, de novos poderes como os do atual Ministério Público, todos em função da democratização que cul-minou no Brasil com a Constituição Federal de 1988, têm contribuído para a judicialização crescente das relações sociais em nosso país.
O Direito do Trabalho sempre foi considerado pioneiro na formulação de um direito especial que quebrou o aspecto formal e individualista do próprio direito, desformalizando-o (WEBER,1999; HABERMAS,1997), por meio de sua feição coletiva e de proteção. Podemos airmar que a judicialização começou cedo na Justiça do Trabalho, fruto da ascensão dos movimentos reivindicativos de classe, principalmente por meio dos sindicatos. Nas décadas de 1930 e 1940 surgiram o direito coletivo do trabalho, a ação coletiva trabalhista e as juntas de conciliação e julgamento com representação de empregados e empregadores buscando ritos céleres. Os conlitos de classe foram encaminhados para a Justiça do Trabalho com objetivo de serem solucionadas por meio pacífico. (OLIVEIRA VIANNA, 1938), um dos principais mentores da Justiça do Trabalho, defendia-a enquanto “entidades administrativas providas de processualidade própria”. Por outro lado, o fato de ela poder criar regras – o poder normativo a ela conferido – também feriu a tradicional independência dos três poderes. O sucesso dessa Justiça foi tão grande que na Constituição Federal de 1946 ela passou a integrar o Poder Judiciário, levando para seu interior mecanismos participativos, embora corporativos.
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Os novos direitos da época eram os direitos trabalhistas. Hoje, no entanto, houve uma inversão com o surgimento de novos direitos coletivos difusos e que procuram defender interesses de cidadania, mais voltados para setores discriminados e para valores culturais e ambientais. Alguns dos novos interesses coletivos chegam a se chocar com os dos trabalha-dores, especialmente quando há contraposição entre indústria e meio ambiente. O próprio mundo do trabalho perde historicamente sua importância.
Na segunda metade do século XX ocorreram fortes transformações nas relações de trabalho. Algumas análises (ROSAVALLON, 1998 e ROBERT CASTEL, 1998) apontam para o fato de o mundo ter vivido os chamados 30 anos gloriosos do inal da Segunda Guerra até a crise do petróleo na década de 70. O Estado do bem-estar social entra em crise por ter aumentado suas despesas e reduzido a sua receita.
As transformações do mundo do trabalho são fruto da automação na indústria, tornando-se desnecessária a constituição de grandes parques industriais com enorme quantidade de operários. Assim, da mesma forma que o setor primário cedeu espaço ao setor secundário, agora este cede espaço ao setor terciário, mais concentrado no mercado que na produção. O tema “mundo do trabalho”, que envolve as relações de trabalho, a organização sindical e a jurídica passa a ser questionado. Há certo consenso sobre a diminuição da importância do trabalho fabril e operário no contexto internacional, embora haja divergência sobre a profundidade dessas mudanças. Alguns entendem que o trabalho e até a luta de classe deixaram de ser o eixo dos acontecimentos sociais (GORZ, 1996; OFFE, 1991; HABERMAS, 1997). O im do trabalho passa a ser profetizado (RIFKIN, 1996), como já o fora a História. Outras análises procuram demonstrar que tais mudanças correspondem às novas formas de exploração do trabalho, de exclusão social, com objetivo de abrir o mercado e enfraquecer o Estado. Esta análise é bem aceita no Brasil (ANTUNES, 1995 e 2000; DEMO, 1998; GORENDER, 1999), e tem inluência do marxismo.
Mais especificamente no âmbito das relações de trabalho, destaca-se a redução do fordismo, que impunha ritmo de produção cadenciado. O cenário da relação entre capital e trabalho deixa de ser o da grande concentração fabril, para entrar em cena a acumulação lexível (HARVEY, 1992) ou capitalismo lexível (SENNETT, 1999). Em países como o Brasil aumentou o que passou a ser chamado de terceirização e precarização do trabalho, com des-taque ao aumento da informalidade do trabalho, rotatividade de mão de obra e desemprego. Diversos postos de trabalho e até categorias inteiras de trabalhadores são suprimidos, o que relete no enfraquecimento dos sindicatos, principalmente os dos trabalhadores mais braçais.
No âmbito internacional, com o im dos regimes do bloco comunista e com a hegemonia capitalista, o paradigma capitalista passou a ser o do tipo asiático, sem leis protetoras do trabalho e com a consequente prevalência das leis do mercado. Esses acontecimentos inluenciam o Direito do Trabalho, que sempre foi calcado no princípio da proteção do trabalhador. Teses a favor da livre negociação contratual, da lexibilização contratual, crescem no campo do direito. No Brasil, no inal do ano de 2001 a Câmara dos Deputados, sob caloroso debate e com enorme acompanhamento da mídia, aprova o projeto de lexibilização da CLT
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(PL n. 5.483/01). Mas com a eleição de Lula o projeto foi arquivado no Senado. Em agosto de 2003 o projeto de terceirização (PL n. 4.302/02) só não foi aprovado em função da constituição do Fórum Nacional do Trabalho, onde o governo pretende concentrar os debates da reforma trabalhista43. Todavia, a MP n. 130 de 17.9.2003 veio a permitir o desconto em folha de dívidas de empréstimos a serem feitos pelos trabalhadores em instituições inanceiras, o que enfraquece um antigo princípio de proteção do salário.
Mesmo com as modificações do mundo do trabalho e a crise do Estado do bem-estar social, do sindicalismo e das leis trabalhistas, a Justiça do Trabalho no Brasil se mantém em sua estrutura formal, pelo menos até o ano 2000. Nesta época a Emenda Constitucional n. 24 de 9.12.1999, extinguiu a igura dos juízes classistas, e as Leis ns. 9.958 e 9.957 (ambas de 12.1.2000), respectivamente, criaram as comissões de conciliação prévia e o procedimento sumaríssimo, conforme mudança na CLT. Ressalta-se que muitas propostas surgiram nos debates da CPI do Judiciário e da Reforma do Judiciário que tramitam no Congresso, onde se destacam as propostas de controle externo e de súmula vinculativa. Em 1999 o relator da Reforma, Aloysio Nunes Ferreira, propôs o im da Justiça do Trabalho e o então inluente Senador Antonio Carlos Magalhães defendeu, na CPI, a tese do professor e magistrado de Minas Gerais, Antonio Álvares da Silva44, que propõe acabar com o Tribunal Superior do Trabalho, o poder normativo e transformar as juntas trabalhistas em juizados especiais da justiça comum.
Muitos estudos sociológicos estão atentos a esse processo e frequentemente o relacionam à existência de crise na Justiça do Trabalho ou ainda de todo judiciário. Muitos autores apresentam como solução a democratização da instituição, embora acentuem dimensões distintas do problema.
Paoli (1994) airma que é necessário mudar a forma de arbitragem monopolizada pelo poder público, baseado excessivamente em uma deinição legalista e normativista de sua atuação. Faria...
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