A legislacao penal de drogas no Brasil e no Mexico: analise comparada desde uma perspectiva critica ao proibicionismo/Drug law in Brazil and Mexico: comparative analysis from a critical perspective to prohibitionism.

AutorDe Avellar Mascarello, Marcela

"Algum dia, quando a descriminalizacao das drogas for uma realidade, os historiadores olharao para tras e sentirao o mesmo arrepio que hoje nos produz a inquisicao" (Javier Martinez Lazaro). Introducao

Uma questao contemporanea recorrente, que atinge possivelmente todos os paises, diz respeito as substancias entorpecentes e as abordagens politicas que suscitam. Verificamos que essa questao--que de inicio poderia ser enfocada sob o prisma politico-social--e tratada enquanto tabu e, na maioria das vezes, encarada e debatida desde o campo moral e ate mesmo religioso. O resultado e quase invariavel: muitos paises veem como unica opcao a criminalizacao, chegando muitas vezes a tipificar penalmente a producao, o comercio e ate mesmo a figura do usuario.

Ha mais de 100 anos foi promulgada a primeira lei antidrogas nos EUA--a Lei Harrison, de 1914--e confeccionado o primeiro convenio internacional sobre a materia--a Convencao Internacional do Opio, em 1912. Desse marco em diante, a guerra as drogas foi progressivamente tornada a grande consigna dos governos ao redor do mundo. Pouco a pouco, instaura-se uma verdadeira cruzada contra as drogas e seus produtores, vendedores e consumidores. Todos, virtualmente, podem ser considerados inimigos e ao inimigo o direito penal direciona suas baterias.

Entretanto, ha algo de curioso nesse percurso: grande parte da literatura especializada aponta justamente para os riscos da criminalizacao, lancando luz sobre os modos como essa guerra as substancias entorpecentes acaba gerando mais problemas do que seu proprio uso. Marcos Kaplan (2010), por exemplo, afirma que, em que pese a especie humana tenha feito uso desse tipo de substancia desde tempos imemoriais e em quase todas as sociedades conhecidas, os problemas associados a toxicodependencia e a acao do narcotrafico correspondem primordialmente a historia recente. Eduardo Lopez Betancourt, a seu turno, encara o modelo proibicionista desde um ponto de vista critico, apresentando dados que fazem cair por terra alguns dos argumentos sedimentados no ambito da Organizacao das Nacoes Unidas, entidade que chegou a sustentar que a guerra as drogas teria o condao de atingir bons resultados. Segundo o autor, a ONU tem como principal abordagem a intensificacao de acoes meramente repressivas. Desse modo, "si el objetivo de la politica antidrogas era erradicar el comercio, y por ende, el consumo de sustancias psicoactivas del planeta, puede afirmarse llanamente, que ha sido un fracaso" (BETANCOURT, 2016, p. 117).

Se e possivel afirmar que o consumo e o comercio de drogas tem originado consequencias sociais desastrosas, os dados fazem crer que isso se credita principalmente a sua condicao de clandestinidade, situacao que se verifica de modo recorrente nos paises da America Latina, nao so nos andinos como Peru, Bolivia e Colombia, mas tambem nos Estados mais populosos como Brasil e Mexico.

O Brasil apresenta um papel importante, tanto como comerciante quanto como consumidor, sendo a economia da droga um elemento estruturante da marginalizacao social que produz niveis de desigualdade abissais e uma gramatica cultural polarizada na dicotomia "morro/asfalto". Ja o Mexico, alem das caracteristicas descritas, tem um papel fundamental no trafico internacional por ser a via de acesso por terra das drogas aos Estados Unidos da America, ensejando represalias que se escalam dia a dia--tenhamos em mente as ameacas proferidas pelo atual presidente dos EUA ao Mexico que, em grande medida, fazem uso da gramatica da guerra as drogas a fim de pavimentar o caminho para graves sancoes geopoliticas que poderao ser impostas em breve (1).

Ao que parece, quando tratamos o problema das drogas em termos geopoliticos, a America Latina tende a ser vista como uma manufatura de inimigos publicos, aptos a ensejar reacoes mais ou menos violentas. Nessa perspectiva, este texto procura realizar uma discussao acerca da questao das drogas no Brasil e no Mexico, a partir de um olhar critico ao sistema proibicionista vigente, cristalizado nas legislacoes de ambos os paises, ainda que suas peculiaridades devam ser ressalvadas e devidamente salientadas. As leis penais de ambos os paises tipificam diversas condutas, dentre elas, os chamados "crimes relativos a substancias entorpecentes" (no caso brasileiro) e os "delitos contra a saude" (no caso mexicano). Se no Brasil o tema nao e regido pelo Codigo Penal--encontrando-se regulado pela Lei 11.343 de 2006, que sucedeu a 6.368 de 1976--, no Mexico, alem das previsoes do Codigo Penal Federal destaca-se a Lei Geral de Saude e os Codigos Penais Estaduais (2).

As notaveis semelhancas entre ambos os sistemas juridicos requerem elucidacao e a analise do modelo proibicionista transnacional fornece elementos capazes de identificar as razoes politico-criminais que permitem esse paralelo. Entretanto, o proibicionismo nao pode ser encarado como um sistema homogeneo. Uma conclusao dessa natureza padece do vicio da simplificacao, ja que a adocao do paradigma proibicionista depende de opcoes politico-criminais por parte de Estados, o que implica acoes concretas de pessoas engajadas. O proibicionismo, sob esse prisma, pode ser encarado como um modelo de reacao punitiva diante de condutas relacionadas as drogas, mas um modelo que depende em alguma medida da agencia de atores concretos. E por essa razao que nao ha determinismos aqui: enquanto modelo historico, o proibicionismo tem uma origem e pode ter um fim. De fato, alguns eventos recentes podem muito bem ser interpretados como sinais de uma gradual ruptura dessa logica, ainda que uma leitura desse tipo necessite de cautela.

Buscaremos, assim, identificar as raizes do modelo proibicionista, seus reflexos na legislacao penal dos Estados que compoem o recorte geografico dessa investigacao e ensaiaremos um esboco comparativo buscando evidenciar alguns pontos especificos que demandam e permitem solucoes juridico-penais em direcao ao fim do proibicionismo.

  1. O Direito Penal Comparado

    Antes de iniciarmos a analise das legislacoes sobre substancias entorpecentes no Brasil e no Mexico convem tecermos algumas consideracoes de ordem teorico-metodologica. A primeira delas diz respeito ao estudo do direito penal comparado, disciplina que adquire certo destaque no debate juridico-penal em especial apos o seculo XIX. Segundo Hans-Heinrich Jescheck, o espirito cientificista dessa epoca dotou os comparatistas da conviccao de que a verdade e a certeza poderiam ser atingidas desde que o metodo cientifico fosse empregado, deixando-se de lado abordagens especulativas (JESCHECK, 2006, p. 20-21), o que acabou fomentando estudos variados nessa area, chegando, inclusive, a se pensar uma especie de "teoria juridica universal", intento que nao foi abandonado (3). A comparacao de sistemas juridicos sem duvida nao e uma novidade historica. Como lembra Rene David, esse tipo de abordagem e tao ancestral quanto o proprio saber juridico, indo da Antiguidade, com a obra de Aristoteles, atravessando a Idade Media e adentrando a modernidade atraves do pensamento de teoricos do porte de Montesquieu (DAVID, 1996, p. 1-2).

    O apelo ao direito penal comparado, em nosso caso, condiz com a necessidade de se problematizar o modelo proibicionista sob um prisma mais abrangente que o usual, sem deixar de fazer mencao a um de seus produtos mais caracteristicos, isto e, a formulacao de legislacoes penais cada vez mais recrudescidas. Ha, tambem, uma razao de ordem utilitaria: a literatura nao cansa de recordar as possibilidades de uso da metodologia comparada no sentido de impulsionar a mudanca e o aprimoramento da ordem juridica interna. Desse modo, David (1996, p. 3) considera que as vantagens do direito comparado podem ser descritas em pelo menos tres planos: a utilidade nas investigacoes historicas ou filosoficas relacionadas ao direito, a possibilidade de aperfeicoamento do direito nacional e a utilidade quanto ao aprimoramento das relacoes internacionais e o mutuo entendimento entre os Estados.

    O uso do metodo comparado nao precisa ser meramente contemplativo, abrindo espaco para objetivos de natureza mais militante, como e o nosso caso. Concordamos com o autor no sentido de aceitar que o direito penal comparado deixe de ser considerado "um mero instrumento de estabilizacao", passando a ser visto "como fator de transformacoes mais ou menos radicais da sociedade pela acao de novas leis" ou mesmo de novas orientacoes doutrinarias e jurisprudenciais que iluminem a interpretacao da legislacao vigente (DAVID, 1996, p. 6). Alias, O uso militante do direito penal comparado sequer e uma novidade. De fato, grandes debates no interior desse saber foram constantemente apropriados por vozes que buscavam a reforma de seu proprio ordenamento--Jescheck (2006, p. 22) recorda o exemplo de Feuerbach, que fez uso do direito comparado a fim de protestar contra certas tendencias de reforma do processo penal, em sua epoca.

    A principal virtude do metodo comparado talvez esteja na possibilidade de desinterdicao teorica que ele proporciona, libertando as mentalidades das amarras de modelos historicos perenes de resolucao de conflitos, cuja eficacia e de todo duvidosa. Ainda, segundo Jescheck, o desenvolvimento desses estudos tende a nutrir a propria dogmatica e promover um entendimento aprofundado e critico do direito penal patrio, contribuindo para melhoria substancial do conhecimento e das praticas no campo do controle penal, inclusive problematizando a eficacia de certas respostas punitivas. Alem disso, no ambito politico-criminal, o direito penal comparado contribui para a agenda reformista, trazendo ao debate uma serie de ideias, conclusoes e experiencias que oxigenam esse campo (JESCHECK, 2006, p. 42-43).

    Apesar da discussao acerca da natureza epistemologica do direito penal comparado (4) e certo que a comparacao de ordenamentos juridicos nos fornece um horizonte compreensivo dotado de virtuosas possibilidades. Tanto que nao sao poucos os...

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