LGBTQI+, vidas precárias e necropolítica em tempos da Covid-19: a interseccionalidade e a teoria queer em cena/LGBTQI +, precarious lives, and necropolitics in times of COVID-19: intersectionality and queer theory on the scene.

Autorde Oliveira Duarte, Marco Jose

"Combinamos de não morrer." (Conceição Evaristo) Introdução

A pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2), que causa a Covid-19 (1), parece ter aprofundado a ação de determinados dispositivos de opressão que, por sua vez, aprofundam as vulnerabilidades e precariedades da vida de pessoas pertencentes à raça negra, ao gènero feminino e que se identificam como LGBTQI+. "La pandemia del Covid-19 ha venido a develar lo que ya sabíamos: una desigualdad social impresionante con sus racismos, sexismos, heterosexismos y empobrecimiento. Devela además que la acumulación capitalista es un sistema de muerte" (CURIEL, 2020, p. 276).

São várias as medidas de biossegurança para proteção frente ao contágio do vírus; dentre elas, chamamos a atenção para o processo de isolamento social, que tem colocado determinados sujeitos em situações de diversos tipos de violência, reforçando as marcas simbólicas e objetivas das vidas precárias, particularmente as subjetivas, muito maiores do que as que já aconteciam de forma naturalizada e normalizada para LGBTQI+. Essas violências são causadas, principalmente, pelo aumento de tempo em casa, no âmbito dos conflitos de convívio familiar, e pela falta de contato com as redes de apoio, solidariedade e acolhimento, assim como pelo desemprego e pela ausência de trabalho, com especial destaque para as pessoas transvestigêneres que tinham como única fonte de sustento e renda a prostituição na rua.

É nesse fio condutor que se estrutura o artigo, tomando como referência o conceito de vida precária (BUTLER, 2019a), necropolítica (MBEMBE, 2018) e interseccionalidade cunhada pelo feminismo negro estadunidense e latino-americano de orientação marxista e, em sua maioria, decolonial. no presente, esse conceito é protagonista em adensar, no campo dos estudos de gênero e sexualidade, a questão da raça e do território na estruturação histórica das classes sociais e, particularmente no nosso caso, na formação social brasileira. Difere, assim, das feministas brancas materialistas europeias, que insistem no essencialismo biologicista do sistema sexo-gênero, na abolição do gênero, na transfobia e no colonialismo epistêmico.

Problematizam-se, portanto, algumas questões e reflexões, num esforço de sistematização levado a cabo pela experiência em curso junto às pessoas LGBTQI+ em tempos pandêmicos, num dispositivo de referência para essa população. Principalmente, focaliza-se a população de travestis e mulheres transexuais trabalhadoras de sexo em uma cidade do interior de Minas Gerais.

À guisa de conclusão, a partir desse processo analítico, no contexto de ativismo negacionista genocida e de suas jornadas anticiência, bem como das cruzadas antifeminismo, antiLGBTQI+ e anti-gênero (PRADO; CORREA, 2018), percebe-se que a população LGBTQI+, no que se refere às políticas públicas e direitos humanos, tem apostado nas inúmeras redes informais de solidariedade como resistência, reforçando-as. Por outro lado, observase, não sem reação, a impunidade das respostas do Estado frente ao colapso na saúde. Essa situação se agrava ainda mais na segunda onda da pandemia, mais violenta do que a primeira, com uma variante do vírus mais agressiva, sem cobertura vacinal adequada, com publicações de fake news e com o fim do benefício emergencial do governo federal, que insiste, com sua narrativa e política, na negação da vida.

Vidas precárias e interseccionalidade

Gostaríamos, a partir de agora, de debater os conceitos apresentados neste título para trazer alguns exemplos e dados a respeito de como a pandemia da Covid-19 aprofunda processos de precarização da vida e recrudescimento da ação de dispositivos de opressões e dominações intersec-cionais de gênero, sexualidade, raça e classe social. Davis (2016), em sua obra Mulheres, raça e classe (2), publicada originalmente nos Estados Unidos da América em 1981, tornou-se referência obrigatória para se pensar, na dinâmica capitalista, o nexo entre racismo e sexismo. Atualmente, o termo é denominado de feminismo negro interseccional. A autora, já nos seus escritos da década de 1970, traz um panorama sobre a interseccionalidade dos eixos de dominação e opressão. A denúncia vem em formato de tese, que demonstra como o Movimento Sufragista estadunidense e, posteriormente, o movimento de mulheres, era branco e elitizado (DAVIS, 2016).

Comentando a declaração da Convenção de Seneca Falls, Davis (2016) demonstra em sua fala a necessidade de interseccionar gênero, sexualidade, raça e classe com o intuito de contemplar a luta dos corpos considerados abjetos e dissidentes. Afirma a autora:

Entretanto, enquanto consumação exata da consciência do dilema das mulheres brancas de classe média, a declaração ignorava totalmente a difícil situação das mulheres brancas da classe trabalhadora, bem como a condição das mulheres negras tanto do Sul, quanto do norte. Em outras palavras, a Declaração de Seneca Falls propunha uma análise da condição feminina sem considerar as circunstâncias das mulheres que não pertenciam à classe social das autoras do documento. (DAVIS, 2016, p. 71). O conceito de interseccionalidade como ferramenta de análise, publicizado por Kimberle Crenshaw (3), tinha sido evidenciado por seu conteúdo analítico na obra de Davis (2016). Contudo, bem antes, Lélia Gonzalez (1984, p. 224) já o tinha feito, nos anos de 1980, de forma a criticar, no contexto brasileiro e latino-americano, os nexos interligados, afirmando que "o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira [...] e sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra". Assim, para Gonzalez (1984), a classe, como outro marcador social, era relevante para se pensar a realidade da mulher negra, ao articular "racismo, sexismo, colonialismo, imperialismo e seus efeitos" (GONZALEZ, 1984). A autora protagoniza, desse modo, a epistemologia da amefricanidade (GONZALEZ, 1988) para o feminismo afro-latino-americano.

Desta forma, a autora leva em consideração as lutas de mulheres negras e indígenas contra o colonialismo, inserindo-se no que hoje chamase de perspectiva decolonial contra as violências geradas pela colonialidade e branquitude em suas mais diferentes formas de opressão, exploração, subordinação e dominação. Assim é como utilizamos, como ferramenta de análise, a conceituação de interseccionalidade, que vem sendo operada e produzindo consequências estruturais, estruturantes e dinâmicas de inte-ração entre esses eixos, entre "nós" (SAFFIOTI, 1987 (4)) e os nexos interligados, conectados e imbricados.

Butler (2019b), para explicar o conceito de vidas precárias, vem ao encontro de Davis (2016), constatando que a vida é precária em si; porém, dependendo de determinado enquadramento, algumas vidas podem ser consideradas enlutáveis, outras não; umas vidas são vivíveis, outras não; e umas serão fundamentalmente sustentadas, enquanto que outras podem morrer pelo não cuidado e sustentação. Para Butler (2019b, p. 53), portanto, "a condição compartilhada de precariedade conduz não ao reconhecimento recíproco, mas sim a uma exploração específica de populações-alvo, de vidas que não são exatamente vidas, que são consideradas 'destrutíveis' e 'não passíveis de luto'".

Há um ponto em comum entre as duas autoras. Ambas percebem, à sua maneira, que determinadas vidas são consideradas e outras não. Assim, a partir da precariedade generalizada, começa-se a construção do corpo que vive e do corpo que pode morrer, a construção da dicotomia entre o abjeto e o distinto--considerando-se abjeto tudo aquilo que não se conforma à normatividade cis-heterossexista. Nesse sentido, para Butler (2019b, p. 36), "nem tudo que está incluído sob a rubrica 'vida precária' é, desse modo, a priori, digno de proteção contra a destruição". Desse modo, para estar protegido contra essa destruição é preciso uma rede social de solidariedade ou de ajuda.

Pensando nessa rede social de solidariedade ou de ajuda, pode-se perceber, de acordo com Saft (2020), que a cis-heteronormatividade está presente em todos os lugares e, segundo o autor, isso acontece porque o território é construído pela norma cis-heterossexista. Por isso que para Saft (2020) a comunidade LGBTQI+ opta pela autossegregação ou isolamento.

Necropolítica, LGBTQI+fobia e pandemia da Covid-19

Por um lado, Judith Butler e outros autores estadunidenses começaram a empreender em suas análises, a partir de Foucault (1988), a questão da sexualidade enquanto um dispositivo histórico de poder...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT