A deposição de lugo e os limites da democracia na américa latina

AutorFabio Luis Barbosa dos Santos
CargoDoutor, Professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)
Páginas25-37

Page 26

Marco geral da eleição de lugo

A eleição de Fernando Lugo como presidente paraguaio em 2008 representou a primeira alternância à dominação colorada na política paraguaia desde a ascensão de Alfredo Stroessner ao poder em 1954. A ditadura comandada pelo general chegou a termo em 1989 por meio de um golpe militar liderado por um subordinado seu, o general Andrés Rodríguez. Eventos dramáticos que animaram a política nacional nos anos seguintes, como o assassinato do vice-presidente Argaña em 1999 e a subsequente renúncia de Cubas Grau perante a pressão popular (o chamado "marzo paraguayo"), as desventuras que levaram o general Lino Oviedo ao exílio e à prisão (e a dissidência intracolorada que liderou), entre outros, não transbordaram os marcos da dominação colorada. Embora a gestão do Estado após a ditadura envolvesse, em alguma medida, o compartilhamento do aparelho estatal com a oposição conservadora, a transição paraguaia foi operada pelo mesmo partido que sustentou a ditadura, caso singular no continente. Neste contexto os liberais, rivais dos colorados nos marcos da política conservadora desde o final do século XIX, enxergaram na adesão à candidatura Lugo nada mais do que um caminho para reaproximarem-se do Poder Executivo.

Por outro lado, o campo popular identificou nesta novidade política uma oportunidade para avançar demandas há muito represadas. País pouco industrializado, que apresenta o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) mais baixo da América do Sul aliado a uma das maiores concentrações de riqueza do continente, o foco das tensões sociais desde o final da ditadura tem sido a questão agrária. Relata-se que no dia seguinte à deposição de Stroessner registraram-se três ocupações de terra1.

As tensões no campo paraguaio acentuaram-se a partir dos anos 1990 ante a explosão do cultivo da soja, atividade protagonizada principalmente, embora não exclusivamente, por empresários de origem brasileira associados às transnacionais do agronegócio, conhecidos como "brasiguaios". Estima-se que em 1973 o cultivo de soja ocupava 40 mil hectares no país. Em 1996, a superfície plantada aproximava-se de 1 milhão de hectares. Com a introdução de sementes transgênicas no final do decênio, calcula-se que a fronteira da soja avançou em média 125 mil hectares por ano nas safras seguintes, alcançando 2,8 milhões de hectares no ciclo agrícola de 2010/2011 (PALAU, 2012). Nesse período, o país manteve altas taxas de crescimento, rompendo com a letargia prevalente desde a construção de Itaipu: em 2010, por exemplo, o ritmo da expansão da economia paraguaia só ficou atrás do Catar. Atualmente, é o quarto exportador mundial de soja e o nono de carne bovina. Essa agressiva penetração do agronegócio incidiu na composição da classe dominante no país, cuja anatomia é resumida pelo sociólogo Tomas Palau:

De ese modo, se conformó la estructura del poder real en Paraguay, basada fundamentalmente en cuatro grupos: la oligarquía ganadera, los narcos, los "empresaurios" y las multinacionales. Como quedó dicho, el primero es el más antiguo; el segundo

Page 27

y el tercero se instalaron con Stroessner; el último es el poder emergente a partir del golpe de 1989 y está integrado por quienes pasan a ser los "adalides" de la democracia mínima que rige en el país hoy. (PALAU, 2012, p. 226)

A expansão concomitante da soja e da pecuária em um contexto em que se esgotava a disponibilidade de terras do Estado (as chamadas "tierras fiscales"), acirrou as contradições entre o agronegócio e os modos de vida de orientação camponesa, além de causar devastação ambiental no oriente do país e no Chaco, onde encontra-se ameaçado, por exemplo, um dos últimos grupos aborígenes que vive em isolamento voluntário no continente, os ayoreo. Como uma resposta a este movimento, recrudesceu a resistência organizada de camponeses e indígenas no único país oficialmente bilíngue do cone sul, que se expressou em uma dinâmica de luta pela terra e repressão estatal familiar aos países latino-americanos.

Fernando Lugo, embora não tivesse uma militância reconhecida no campo da esquerda2,

projetou-se como figura política por meio de uma atuação episcopal afinada com a sensibilidade social característica da teologia da libertação, exercida no interior do país neste contexto de aguçamento das tensões no campo. Como candidato, fez da reforma agrária a sua principal promessa de campanha, arrebanhando o apoio daqueles que empatizavam com as mudanças sociais.

Esposada pelos setores populares, mas lastreada na estrutura partidária liberal, a candidatura de Lugo consumou um casamento de conveniência, em que ensejos díspares convergiram sob o desígnio comum de derrotar os colorados. Como decorrência, seu triunfo eleitoral pode ser interpretado antes como uma rejeição à situação prevalente do que como um triunfo da esquerda, em um país em que as forças populares estiveram asfixiadas por meio século de dominação colorada, na maior parte sob ditadura, e encontram dificuldades em solidificar instrumentos de política autônoma. Neste sentido, a eleição de Lugo encontra paralelo em outros casos no continente, em que desconhecidos alçaram-se ao Poder Executivo por meio de arranjos políticos ad hoc, em uma conjuntura de desprestígio dos partidos e dos políticos convencionais, desgastados diante da impopularidade do receituário neoliberal. Questionado sobre as convicções políticas do novo presidente, um futuro integrante do governo resumiu o espírito prevalente: não me perguntem sobre quem entra, mas sim sobre quem sai.

Sobre o governo lugo

Dentre aqueles que simpatizaram com a vitória de Lugo, há dúvidas em relação à vontade política que o governo demonstrou para transformar a realidade, mas há consenso sobre os obstáculos que enfrentou. Eleito com 40,9% dos votos em uma aliança com os liberais, que indicaram o vice-presidente, as agremiações no campo da esquerda que integraram a coligação elegeram 3 dentre os 80 deputados, e um igual número de senadores de um total de 45. Para constituir maioria nas câmaras, o Executivo precisaria compor não

Page 28

somente com os liberais, que elegeram 29 deputados e 14 senadores, mas também com a dissidência colorada comandada por Lino Oviedo sob a sigla UNACE (Unión Nacional de Ciudadanos Éticos). A frágil autonomia do presidente é realçada pela constituição em vigor, oriunda da transição, e que acentua a dependência do Executivo em relação ao parlamento. Nesta circunstância, são evidentes os constrangimentos enfrentados para propor mudanças substantivas por meio dos canais legais vigentes, considerando o perfil dos parlamentares em questão, descrito nestas palavras por um estudioso anglo-saxão:

The most obvious thing to note is that they are almost all large rural landowners, with titles held either directly or in the names of friends and family. In 2008, a former head of the World Bank in Paraguay expressed his shock at discovering that virtually every member of congress that he met fitted this description. Many were also beneficiaries of the illegal transfer of large tracts of state lands (typically 2,000 hectares and above) to military and civilian supporters of the Alfredo Stroessner dictatorship, a process that continued through the subsequent two decades of Colorado governments. (NICKSON, 2012)

Diferente de outros casos recentes no continente, Lugo não cogitou convocar uma Assembleia Constituinte, o que exigiria, de todo modo, uma força política que aparentemente não tinha para comandar o processo - como aconteceu na Venezuela, na Bolívia e no Equador. Em todo caso, não era esta a proposta de Lugo e analistas paraguaios consideram esta aproximação equivocada à luz do que o governo efetivamente se propôs a fazer.

Em um arranjo que lembra o primeiro governo Lula, os ministérios mais importantes foram alocados a personalidades de confiança do capital - como a Fazenda, Obras Públicas e Agricultura y Ganadería -, enquanto abriu-se espaço para o campo popular na Saúde e em organismos menores - como o Ministério da Cultura, a Secretaria de Indígenas, a Secretaria Ambiental e o Indert (Instituto Nacional de Desarrollo Rural y de la Tierra - espécie de INCRA paraguaio). Programas sociais de caráter assistencial foram implementados e abriram-se múltiplos espaços de participação cidadã que, no entanto, não significaram qualquer mudança estrutural.

Em que pese a inocuidade das políticas sociais avançadas, os principais movimentos de trabalhadores rurais adotaram uma espécie de "trégua" em relação ao governo - o que significou uma moderação, mas não a cessação de ocupações e marchas. Entendia-se que a pressão social poderia desestabilizar um mandato que, apesar de suas debilidades, pela primeira vez lhes abria as portas presidenciais. Em certa medida, não era uma leitura equivocada, considerando-se os eventos subsequentes.

A boa vontade expressa pelos movimentos populares em relação ao governo não foi recíproca. Pelo contrário, houve uma aproximação com a Colômbia em assuntos relacionados à segurança nacional comandada pelo Ministério do Interior, que resultou em treinamentos e assessorias diversas referenciadas no famigerado Plan Colombia. Lugo também aprovou uma lei antiterrorista votada pelo parlamento nos moldes difundidos pelos Estados Unidos, além de permitir o estabelecimento da Iniciativa Zona Norte, prevendo a instalação e o exercício de tropas estadunidenses na região oriental do país (MENDEZ, 2012).

Page 29

Nesse cenário, a repressão aos movimentos sociais no campo não abrandou, regis-trando-se dezenas de casos de violência em consonância com o padrão prevalente em governos anteriores, inclusive o assassinatos de militantes. Segundo observadores dos direitos humanos, o momento culminante dessa política de segurança...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT