Linguagem e interpretacao de textos juridicos: estudo comparado entre realismos juridicos/Language, legal texts and legal interpretation: notes for a comparative study between legal realisms.

AutorBittar, Eduardo C.B.
  1. Introducao: entre realismos juridicos

    Em Teoria do Direito, as tendencias e as concepcoes dos realismos juridicos do passado e do presente sao muito diversas entre si. A expressao 'realismo juridico' parece espelhar uma tendencia unica, seguida por autores(as) em varias partes do mundo, mas, apos uma analise mais apurada, essa primeira impressao se desvanece, para se destacar uma enorme diversidade de visoes e perspectivas entre os teoricos do realismo juridico, que vem se desenvolvendo desde o final do seculo XIX ate o inicio do seculo XXI. Desde logo, e importante deixar claro que a expressao 'realismo juridico' e aqui tomada para designar o conjunto das concepcoes teoricas sobre o Direito constituidas com uma base comum, qual seja, a 'revolta contra o formalismo', como assinala a jurista italiana Carla Faralli. (1) A 'revolta contra o formalismo' aqui e tomada apenas como um ponto de partida, mas os pontos de chegada das diversas concepcoes teoricas que dai vem surgindo irao matizar as diferencas entre Autores(as) e suas visoes sobre o Direito. A parte o ponto de partida, no geral, as visoes realistas implicam um deslocamento da Teoria do Direito do mundo das normas juridicas para o mundo da aplicacao do Direito, implicando uma preocupacao com o carater empirico das 'assercoes juridicas', (2) o que ira implicar outra tendencia comum entre os teoricos, qual seja, o deslocamento para o campo dos problemas de concretizacao, decisao e interpretacao do Direito.

    Por isso, se o realismo juridico implica em posicoes e perspectivas muito diversas entre si, sera necessario catalogar as linhas em ao menos quatro grandes grupos, como o faz o jurista italiano Giovanni Tarello. (3) Mas, apesar das divergencias, a posicao comum a todos os realismos juridicos parece ser a questao da complexa relacao entre validade do Direito - garantida pelas normas juridicas - e eficacia do Direito - apenas garantida pela aplicacao judicial. (4) E isso, fundamentalmente, porque os realismos juridicos discordam do ponto-de-partida do raciocinio da tradicao do positivismo juridico, segundo o qual o Direito Posto na forma da norma juridica e suficiente para criar seguranca juridica em sociedade.

    Este e o ponto de discordancia que da alento ao desenvolvimento das diversas posicoes teoricas mais sedimentadas e conhecidas no campo dos realismos juridicos, que, num mapeamento minimo e, em perspectiva mundial, nos revela um imenso campo de linhas de analise, momentos historicos e contextos de debates teoricos muito diferentes entre si, e que se podem agrupar da seguinte forma: (i) o Realismo juridico escandinavo (Axel Hagerstrom; Anders Sandoe Orsted; Karl Olivecrona; Wilhelm Lundstedt; Alf Ross); (ii) o Realismo juridico italiano (Enrico Pattaro, Bologna; Giovanni Tarello; Riccardo Guastini; Paolo Comanducci, Genova); (iii) o Realismo juridico frances (Michel Troper); (iv) o Realismo juridico norte-americano (Karl N. Llewellyn; Jerome Frank; Carl Sustein; H. Oliphant; Roscoe Pound; Oliver Holmes; Roberto M. Unger). (5) Com relacao a estas quatro (iv) grandes linhas de expressao do realismo juridico, se pode acrescentar uma nova perspectiva realista, formulada recentemente no Brasil (2018), e derivada da Teoria Critica da Frankfurter Schule, (6) e que se desenvolve sob o titulo de Teoria do Humanismo Realista (v). (7) O que ha de comum entre as teorias mais sedimentadas, e esta nova concepcao, surgida no contexto latino-americano, e o incomodo inicial que movimentou a formulacao das diversas concepcoes de realismos juridicos, em face da Teoria Tradicional, ou seja, em face dos mandamentos centrais oriundos da tradicao do positivismo juridico.

    Por isso, nao obstante se reconhecer a enorme diversidade de concepcoes realistas, este artigo faz a opcao por um estudo mais restrito e localizado, pontual e circunscrito, para fins de delimitacao de sua abrangencia. No ambito deste estudo, as teorias realistas abordadas serao: i) o realismo juridico italiano de Riccardo Guastini, o Realismo Metodologico, tambem chamado de realismo juridico italiano, ou genoves; ii) e, o realismo juridico brasileiro, o Realismo Emancipatorio, contido nas premissas da chamada Teoria do Humanismo Realista. A escolha de ambas as perspectivas teoricas nao somente repousa na originalidade deste estudo, quanto se destaca a aposta em dois fatores centrais: ambas as concepcoes correspondem a visoes de realismo juridico contemporaneo, sendo que ambas trazem fortes contribuicoes no plano da discussao sobre a linguagem juridica e os textos juridicos.

    Se ha inumeras concepcoes e perspectivas realistas brasileiras na Teoria do Direito, (8) o mesmo se pode afirmar sobre o realismo italiano. (9) Mas, em termos de delimitacao para um artigo cientifico, diante da vastidao do campo de estudo, pretende-se dar atencao central as seguintes obras: de Riccardo Guastini, sera aqui considerado decisivo e constitutivo o estudo intitulado Dalle fonti alle norme (1990), (10) sendo de se reconhecer que a obra mais recente Interpretare e Argumentare (2011), (11) traz mais moderacao as concepcoes iniciais; de Eduardo C. B. Bittar, serao aqui consideradas as obras O direito na pos-modernidade (2003), Linguagem Juridica (2017) e Introducao ao estudo do Direito: humanismo, democracia e justica (2018), e o que a sua interpretacao conjunta indica no campo da formulacao de uma visao contemporanea do Direito em realidade latino-americana. (12)

    Em suma, a proposta de um estudo teorico-comparativo de duas tradicoes diferentes de realismos juridicos, o Realismo Metodologico (Riccardo Guastini), na perspectiva italiana, e o Realismo Emancipatorio (Eduardo C. B. Bittar), na perspectiva brasileira, e a de verificar alinhamentos e desalinhamentos entre ambas as concepcoes, compreendendo que ambas as concepcoes fornecem visoes alternativas aos limites teoricos da tradicao do positivismo juridico. Assim, nao se pretende exaurir o tema, tendo em vista a enorme bibliografia que o cerca, mas extrair alguns apontamentos iniciais entre tradicoes teoricas, sabendo-se que estes apontamentos estarao concentrados na questao da linguagem juridica e se voltarao para a discussao acerca da importancia da atividade de interpretacao juridica, tendo-se em vista a centralidade que a questao ocupa em ambas as posicoes teoricas.

    Por fim, cabe destacar a importancia dos estudos comparados entre autores latino-americanos e europeus, sabendo-se que a Teoria do Direito de Riccardo Guastini vem recebendo uma recepcao paulatina e adequada (13) no Brasil contemporaneo. (14) Assim, fortalecer este campo de aproximacoes representa uma contribuicao reflexiva ao linguistic turn, ha muitos anos consolidado na literatura juridica brasileira. (15) Assim, ao longo do artigo, se procurara abordar o Realismo Juridico Metodologico, numa primeira parte (itens 2, 2.1, 2.2. e 2.3), para, em seguida, poder-se abordar a Teoria do Realismo Humanista, numa segunda parte (itens 3, 3.1., 3.2, 3.3), e, ao final, poder-se desdobrar a conexao entre as duas concepcoes (itens 4, 4.1., 4.2, 4.3), considerando-se o campo tematico da linguagem juridica, dos textos juridicos e da interpretacao juridica o ponto de ancoragem das mais relevantes aproximacoes teoricas.

  2. O Realismo Juridico Metodologico: tres tracos centrais

    A Teoria do Direito formulada pelo realismo juridico genoves de Riccardo Guastini se desenvolve numa perspectiva analitica, cetica, nao-cognitivista e decisoria. (16) Ela se afirma como uma Teoria voltada para a compreensao do Direito como um fenomeno que depende da linguagem natural e da linguagem juridica. Por isso, o primeiro traco a se constatar e a relevancia que os estudos de linguagem tem para a sua arquitetura interna, dentro da grande tendencia na Filosofia e Teoria Geral do Direito, de reconhecer que o aprimoramento da linguagem tecnica e o que confere maior certeza e precisao a Ciencia do Direito, como observa Antonio Enrique Perez Luno. (17) Sabendo-se que a linguagem define o conjunto das praticas discursivas do Direito, e que a questao da interpretacao assumira uma relevancia central em sua configuracao.

    Por isso, com toda a sua forca, a concepcao de Riccardo Guastini acaba por se configurar como uma teoria realista da interpretacao juridica. (1)8 Com essa opcao, a teoria se apresenta como um realismo juridico metodologico (nao-ontologico ou nao-epistemologico), (19) ou seja, como uma teoria que esta em constante busca por compreensao do Direito em sua pratica, tendo como inquietante a presenca da pergunta: "Que tipo de atividade e a atividade interpretativa?". (20) Tendo esta questao como mote de suas investigacoes, e que se dara enfase ao tratamento da indeterminacao da linguagem juridica (i), da centralidade dos textos juridicos (ii) e da atividade da interpretacao juridica (iii), tematicas parciais que se apresentam interconectadas em sua Teoria e que, por isso, terao importancia decisiva em sua configuracao interna.

    2.1. A indeterminacao da linguagem juridica

    A linguagem natural e a linguagem juridica estao atravessadas por forte indeterminacao, e a inseguranca juridica e uma caracteristica geral que se transmite das praticas discursivas as praticas de justica. Assim, se os enunciados normativos nao conseguem transmitir plena seguranca regulatoria a sociedade, os operadores do Direito sao obrigados a enfrentar desafios que sao proprios ao mundo das linguagens. E isto que faz com que o realismo juridico de Riccardo Guastini (21) se aproxime da ideia da indeterminacao da linguagem juridica - na esteira dos estudos acerca da open texture do Direito, seja de Genaro Carrio, (22) seja de Herbert L A. Hart. (23) E nisto, uma grande parte dos juristas contemporaneos esta de acordo, para ressaltar que a indeterminacao impede que as solucoes das normas para as decisoes sejam univocas, e se transfiram como que por processos logico-subsuntivos. (24)

    Nesta fase inicial da teoria do jurista italiano Riccardo Guastini, o ceticismo com...

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