A luta antimanicomial nos governos democráticopopulares: contribuições para um balanço a realizar/The anti-asylum struggle in popular-democratic governments: contributions for taking stock.

AutorAlbrecht, Daniela

Introdução

A trajetória da luta antimanicomial brasileira expressa particularmente uma luta que é mais geral. Reafirmar essa compreensão hoje nos parece especialmente importante, dado que os elos entre essas duas dimensões - a mais específica do movimento e aquela mais ampla da luta de classes - aparecem pronunciadamente apagados, de modo geral, na compreensão predominante do campo a seu próprio respeito. Tal apagamento se mostra uma decorrência da trajetória recente da luta de classes no Brasil e, como parte dela, do movimento antimanicomial, já que nem sempre foi assim. O próprio surgimento da luta antimanicomial esteve marcadamente atrelado a lutas mais amplas, do conjunto da classe trabalhadora. Como e por que um movimento, que surge tão enraizado nas lutas da classe, se descola desse escopo mais geral a ponto de quase não reconhecer esses vínculos? Como se opera essa passagem de um a outro momento?

O presente artigo tem como premissa a existência de certo vínculo entre a trajetória da luta antimanicomial brasileira e aquela do Partido dos Trabalhadores (PT), que se constituiu como a principal mediação consciente da classe, no seu conjunto, no ciclo histórico recente. Nossa abordagem não se confunde com um atrelamento mecânico entre partido e movimento. Levamos em conta, entretanto, que o debate estratégico da classe, considerada em um plano geral, ganha importância central para a compreensão dos caminhos do movimento e de seu processo de consciência particular. Nossa hipótese é a de que a trajetória antimanicomial no Brasil se desenvolveu de modo conectado às apostas estratégicas democráticas e populares da classe trabalhadora; sem que isso signifique supor, reiteramos, um vínculo imediato, que porventura indique, por exemplo, a aplicação, no plano do movimento, de propostas elaboradas em âmbito partidário. A interação entre certa parte e o todo em que se encontra inserida é, para nós, dialética, marcada necessariamente, portanto, por continuidades e descontinuidades. O movimento particular guarda também aqui, como sempre, relativa autonomia no que tange à totalidade a que se encontra referido.

A estratégia democrática e popular, que teve o Partido dos Trabalhadores como principal expressão política no último ciclo da luta de classes no Brasil, foi aquela que no período recente orientou de modo predominante a classe trabalhadora nas suas lutas (IASI, 2012; COELHO, 2005). A história da luta contra os manicômios no Brasil se entrelaça com a história das lutas da classe trabalhadora brasileira nesse ciclo; nossa hipótese é de que, no seu desenvolvimento histórico, o movimento antimanicomial expressou, particularmente, elementos da configuração estratégica que orientou de modo predominante a classe nas batalhas travadas. Neste artigo exploraremos então, de modo sintético, traços deste desenvolvimento nos seus últimos anos, abordando aspectos desta interação que se apresentam no período que abrange os anos dos governos democrático-populares, ponto de maior amadurecimento da estratégia petista, que se realiza com a chegada ao governo, após um longo percurso de importantes metamorfoses (IASI, 2012; MARTINS et al., 2019).

Comecemos, pois, apresentando, brevemente, as linhas gerais desta configuração estratégica nos seus momentos iniciais. Buscaremos iluminar também, em uma primeira aproximação, de que modo estiveram conectadas a estratégia particular do movimento e aquela mais geral, que orientou a classe no seu conjunto.

A estratégia democrática e popular e o movimento antimanicomial no Brasil

A democracia teria papel central desde cedo na estratégia que se conformava a partir de finais dos anos 1970. Lutas de caráter democratizante somavam-se a lutas econômicas, travadas pela classe trabalhadora no coração industrial do país através de importantes movimentos grevistas, dinamizando a transição democrática imposta à autocracia burguesa chancelada pelos militares. A luta democrática, fundamental na constituição do novo partido que fusionava as lutas da classe, somava-se a outros elementos no caldo histórico em que tal partido fermentava; em fins de 1970, as experiências socialistas do Leste eram confrontadas por duras (e necessárias) críticas em razão dos rumos autoritários que as marcavam. No Brasil, a luta contra o regime que durante as últimas décadas havia interditado e reprimido violentamente canais formais mínimos de participação política sob a ordem burguesa, somada ao contexto mais amplo de crise do socialismo vigente no Leste, alçavam a democracia ao centro da nova estratégia, que amadurecia junto com as lutas da classe. O Partido dos Trabalhadores, parte também deste amadurecimento, nascia como principal expressão política da classe.

Desde os documentos pré-partidários, é possível reconhecer traços constitutivos da nova estratégia que se conformava. Mas é no 5 (o) Encontro Nacional do partido (1987) que ela se apresenta de forma mais acabada (IASI, 2012; MARTINS et al., 2019). O socialismo era declarado como objetivo estratégico pelo ainda jovem partido, que reivindicava independência de classe e caráter anticapitalista. Uma das premissas assumidas era, entretanto, a de que não haveria condições imediatas para esta transição, dado que o socialismo não estava na ordem do dia. Isso impunha a necessidade de um longo período de acúmulo de forças, a ser desenvolvido através de uma dupla atuação, conjugando a ocupação de espaços no interior do Estado com a ação dos movimentos populares. Tal articulação possibilitaria a realização de reformas profundas neste aparelho no sentido de sua democratização, as chamadas reformas democráticas e populares. A democracia, neste caminho, era a via prioritária e também indicava a qualidade do socialismo a ser desenvolvido. O referido processo de acúmulo de forças serviria à construção da hegemonia pela classe trabalhadora, que seria iniciada pela conquista e formação de um governo democrático e popular.

A oposição aos manicômios no Brasil desponta, em finais dos anos 1970, como parte das lutas travadas pelo fim da ditadura empresarialmilitar, mesmo contexto em que o Partido dos Trabalhadores nascia. Conectados às lutas sanitárias pelo direito à saúde, os enfrentamentos no campo da psiquiatria representam parte desta batalha setorial, expressando, contudo, um plano mais amplo de transformação da sociedade, que os transbordava. O projeto de reforma psiquiátrica, que se delineia naqueles anos como programa do movimento contra os manicômios, inscreve-se como parte daquele conjunto de reformas democráticas e populares, elementos táticos no bojo da nova configuração estratégica, que, paulatinamente, passava a direcionar a classe nas suas lutas. O curso de implementação da reforma guardaria conexão estreita com os passos do movimento - o principal motor da reforma psiquiátrica brasileira. Em que pese a relativa autonomização que a reforma ganha ao longo desta trajetória, ela se configurou, sem dúvida, como uma resultante da atuação do movimento antimanicomial.

A reforma psiquiátrica brasileira constitui-se como materialização das intenções do movimento antimanicomial; a principal concretização, portanto, do que foi o projeto do movimento, nas condições próprias do seu desenvolvimento. Evidentemente não se trata da mesma coisa que ele. Mas, enquanto materialização de uma intencionalidade posta pelo movimento, ela não deve ser pensada, acreditamos, de modo apartado dos caminhos do seu desenvolvimento. Este, por sua vez, não brotou como um raio em céu azul, mas deve ser compreendido na dinâmica das classes em luta, de que foi (e é) também uma parte, na complexa trama política, econômica e social que compõe o contexto histórico em que se desenvolveu.

As formulações táticas e as práticas políticas ali forjadas guardaram, então, relação estreita com o conjunto dos dilemas enfrentados pela classe trabalhadora, assim como no que diz respeito ao todo do movimento sanitário, como indica a análise de Dantas (2014). A crise vivida no curso dessa trajetória - em matizes atualmente dramáticos - materializa uma crise que também ultrapassa o escopo particular. O que temos produzido como síntese no campo da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial no Brasil traz as marcas das contradições que viemos enfrentando nos caminhos pelos quais a classe trabalhadora se moveu no último ciclo histórico, agora em processo de fechamento (MARTINS et al., 2019).

A estratégia democrática popular não nos conduziu ao socialismo e tampouco nos aproximou dele, tendo-se mostrado malsucedida na tentativa de acumular forças. A pretensão de radicalização da democracia se resumiu à sua mistificação, mostrou-se a adequação necessária ao prosseguimento da acumulação capitalista no Brasil em face das contradições de seu tempo, conformando-se como uma democracia de cooptação tornada possível pelo apassivamento da classe trabalhadora. O momento presente parece lembrar de maneira dramática que uma negação pode tornar-se seu contrário quando ela não supera aquilo que pretendia negar.

O percurso recente da classe trabalhadora no Brasil, longe de romper com a ordem, levou a um...

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