Lutas sociais e Serviço Social no Brasil face às querelas do nosso tempo/Social struggles and social work in Brazil in face of the issues of our times.

AutorGuimarães, Maria Clariça Ribeiro
CargoARTIGO

Introdução

O tempo presente exige, mais do que nunca, o fortalecimento dos movimentos classistas e anticapitalistas, e não por acaso a articulação dos(as) assistentes sociais com os movimentos sociais impõe-se na contemporaneidade como uma requisição profissional central para avançarmos na direção do projeto ético-político. Afinal, justamente em face do aprofundamento das desigualdades sociais é que a profissão precisa ser provocada a (re)elaborar a sua atuação para além dos limites institucionais. Inegavelmente, a dinâmica atual da luta de classes, incluindo os movimentos sociais, articulados na cena política contemporânea, suas reivindicações, suas formas organizativas e sua capacidade de politizar as expressões da questão social, colocam desafios que tornam imprescindível aprofundar a relação de organicidade da profissão com as lutas e mobilizações populares das classes subalternas, no sentido do fortalecimento do projeto ético-político, do trabalho e da formação profissional em Serviço Social.

Com essa perspectiva, sob a inspiração da música Querelas do Brasil, composta em 1978 por Aldir Blanc e Maurício Tapajós Gomes, e lantu ada por Elis Regina no álbum Transversal do tempo, intitulamos e estrujamos o presente artigo discutindo os processos sócio-históricos, econômicos e políticos do país na contemporaneidade. Como marco temos o alargamento do conservadorismo e retrocessos operados entre nós a partir da conjuntura aberta pelo golpe de 2016, num contexto de tomada reacionária das ruas que nos levou a experienciar as últimas consequências da chamada cultura da crise com austeridades e contrarreformas: a institucionalização da barbárie. Esta traduz-se na radicalização contemporânea da blindagem da democracia liberal brasileira a partir da ascensão da extrema direita no país. Um projeto retrógrado de Brasil, que articulou setores conservadores, liberais e protofascistas num cenário de crise econômica, social e política, agravada, sobremaneira, pela crise sanitária a partir de 2020 e pelas devastações da natureza e da humanidade, em curso.

Esse é um projeto para o país que entra em confronto direto com as demandas populares politizadas pelos movimentos sociais organizados, inclusive, potencializando a letalidade do aparato repressivo direcionado, especialmente, aos conflitos decorrentes das lutas sociais. Mesmo assim, os movimentos sociais orgânicos de resistência e contestação seguem com seus processos de mobilização, ainda que não sem dificuldades. E o serviço social deve buscar, ainda mais, a eles se articular.

Nessa direção, as reflexões e análises contidas neste texto são resultado de revisão teórico-bibliográfica de autores, especialmente, da área de conhecimento do serviço social, que, com aporte na teoria e no método marxista, discutem o trabalho profissional e sua relação com os movimentos sociais frente aos dilemas contemporâneos postos na realidade brasileira. Para a abordagem da temática em tela, o texto foi dividido em duas partes. A primeira trata dos conflitos de classe e da disputa de projetos para o país, a partir do golpe de 2016, que colocou uma série de desafios à democracia brasileira. A segunda parte traz apontamentos críticos sobre a relação do serviço social com os movimentos sociais na atualidade. Busca-se indicar o fortalecimento das lutas sociais como um dos propósitos do projeto éticopolítico da profissão, tanto no que confere ao trabalho quanto à formação profissional, mas que, muitas vezes, é atravessado por tensionamentos frente aos embates inerentes à sua direção contra-hegemônica.

"O Brazil não merece o Brasil": conflitos de classe e projetos em disputa na realidade brasileira contemporânea

Ao prescindir do uso de mais mecanismos coercitivos, o golpe de 2016 no governo da presidenta Dilma evidencia a força da democracia blindada brasileira, posto que, ao ser desenvolvido em modus operandi capaz de dar por dispensável a recorrência aos golpes clássicos de Estado, demonstra até mesmo - e por essa razão - inexistir a priori qualquer necessidade de suspensão do regime democrático vigente. Afinal, face aos inconvenientes identificados, nada obsta a democracia blindada que ela própria possa proceder ao seu devido saneamento (DEMIER, 2017), por meio de mecanismos internos e inerentes à blindagem democrática contemporânea.

A democracia blindada configura, nessa direção, para Demier (2017), uma nova gestão burguesa da luta de classes, agora constituída em sua forma ótima. Nestes termos, corroboramos com as formulações do autor na afirmação de que as democracias blindadas correspondem ao nível par excellence da democracia burguesa, inviabilizando possibilidades e ilusões, outrora supostas, de qualquer imposição de limite aos ditames do capital pelos caminhos da institucionalidade.

Na lúcida síntese de Braz (2017), tratou-se de medidas com finalidades específicas e bem definidas: retomada da dominação imperialista no Brasil, em condições as mais favoráveis; redução dos custos do trabalho e, ao mesmo tempo, aumento de sua produtividade média; retrocessos culturais e ideológicos, intensificando a ofensiva especialmente ao campo dos direitos humanos; e reconfiguração das políticas sociais com base na ortodoxia neoliberal, tornando-as ainda mais focalizadas, sobretudo no caso da seguridade social. Em tempos de crise são as políticas que a conformam (saúde, previdência e assistência) que se constituem como alvos prioritários dos processos contrarreformistas (MOTA, 2015), dado o vínculo direto com os custos com a reprodução da força de trabalho, condição precípua para a acumulação do capital.

Apesar dos graves retrocessos sociais empreendidos pelo governo Temer, seguir com a implantação do programa político do golpe, dessa feita com o respaldo das urnas, era uma necessidade da burguesia para, ao fim e ao cabo, dar vazão à totalidade do programa político do golpe, traduzido em austeridades e contrarreformas, o que vem a ser assegurado com a legitimidade conferida pelas urnas ao governo Bolsonaro. Na análise de Demier (2019), o golpe de 2016 leva ao auge o sentido contrarreformista da democracia blindada, passando a fortalecer o lado coercitivo do regime. Nesse sentido, das entranhas da blindagem da democracia liberal brasileira parece nascer, a partir das eleições de 2018, uma democracia dos blindados, a promover uma verdadeira barbárie institucionalizada.

Nesse contexto, a agenda de defesa da não política pública presente nas pautas e formulações de movimentos como o MBL (GUIMARÃES, 2019) foi adensada pela potencialização e difusão da máxima intolerância. Além disso, o elitismo concebido em cada proposta apresentada para as políticas públicas - em muito bastante similar ao implementado pelo governo Temer - foi acrescido do desprezo à democracia, configurando um quadro societário em curso a sinalizar mais do que qualquer conservadorismo. Opera-se concretamente uma ameaça reacionária e suas expressões anticivilizatórias.

A longa e lamentavelmente realista relação encontrada em Behring (2019) ilustra bem a dimensão perversa do bolsonarismo e suas distintas expressões e desdobramentos devastadores da natureza e da humanidade, materializados por meio de queimadas criminosas na Amazônia brasileira; ameaças aos povos indígenas; precarização e informalidade de um mundo do trabalho sem direitos (inclusive previdenciários); gritante empobrecimento da população; brutal crescimento da face penal do Estado; censura no campo da arte; desmonte do controle democrático; intervenção em escolas e universidades, em detrimento do legítimo respeito às eleições democráticas de reitores e diretores; dentre tantas outras discutidas pela autora ou que a ausência de freios a tamanhos recrudescimentos democráticos nos demandem ainda acrescentar.

Isso em um tempo forjado em meio às tensões e contradições de uma realidade na qual comunidades tradicionais e/ou periféricas são alijadas de seus territórios - postos em disputa - frente a despejos, pistolagens, invasões, desmatamentos e massacres. São conflitos agrários, urbanos e socioambientais que, dispostos sob estruturas patriarcais e racistas, enovelam violências contra meninas e mulheres, especialmente negras e de etnias originárias, aos processos de exploração neocolonialista da natureza e, com isso, estendem a devastação dos territórios também aos corpos-territórios (GOMES, 2020). Nesse cenário, o avanço do...

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