Marcuse and the New Left in three acts: lessons from yesterday and today/ Marcuse e a nova esquerda em tres atos: licoes de ontem e hoje.

AutorSantana, Marco Aurelio

E, em toda parte, ainda ha aqueles que protestam, que se rebelam, que combatem. Ate mesmo na sociedade da superabundancia eles estao ai: os jovens, que ainda nao desaprenderam a ver, a ouvir e a pensar, que ainda nao abdicaram, e aqueles que ainda sao as vitimas da superabundancia e que dolorosamente estao apenas comecando a aprender a ver, ouvir e pensar.

(Marcuse)

Introducao

A intervencao de Herbert Marcuse no ambito da teoria marxista, em especifico e, em sentido mais amplo, da teoria critica, e vasta e intensa. Qualquer aproximacao mais sintetica a sua obra, que, grosso modo, se estende com variacoes internas importantes e derivacoes nao negligenciaveis, dos anos 1930 ate o fim dos anos 1970, logo se depara com um desafio posto pela ampla gama de temas ali tratados.

Neste artigo, depois de uma breve apresentacao de sua biografia politico-intelectual, que cruza aspectos institucionais e militantes, nos turbulentos anos 1960, nos concentramos em tres possiveis entradas a sua obra, enfatizando elementos contidos em tres de seus escritos mais relevantes:

0 homem unidimensional (primeira edicao, 1964), Um ensaio sobre a libertacao (primeira edicao, 1969) e Contra-revolucao e revolta (primeira edicao, 1972). (1) Daquele primeiro escrito, destacaremos o diagnostico algo pessimista de Marcuse sobre a supremacia da "racionalidade tecnologica" como "ideologia" hegemonica do capitalismo avancado; do segundo, as novas forcas subjetivas de "oposicao" surgidas a partir da mudanca nos ritmos e formas das mobilizacoes sociais internacionais nos anos 1960 e, por fim, precedendo nossas consideracoes finais, uma analise das forcas de reacao que se impuseram a estes movimentos.

Uma das contribuicoes mais instigantes da obra de Marcuse esteve, sem duvida, em sua sensibilidade aos fatores subjetivos implicados no desenvolvimento do modo de producao capitalista. Nao que a obra de Marx e Engels, tomada de forma ampla, e a de seus sucessores e epigonos marxistas a tivessem negligenciado totalmente, bastando recordar, a titulo de exemplo, os decisivos debates sobre a relacao entre a consciencia de classe e a organizacao no interior tanto da Primeira quanto da Segunda Internacional.

Sua inovacao esteve, antes, relacionada a forma pela qual este tema passou a ser pensado a partir de seus escritos e intervencoes. Passava a ter cada vez menos preponderancia em suas reflexoes, em particular naquelas levadas a cabo entre a segunda metade da decada de 1950 e o ultimo quarto da decada de 1970, nos quais nos baseamos aqui, um esquema geral que enxergava o componente subjetivo como um mero reflexo das condicoes reais de existencia. Como se a transformacao de um levasse inevitavelmente a mudanca no outro, numa relacao de estrita e necessaria homologia.

Naturalmente, dita mudanca respondia a alteracao num certo espirito do tempo, marcado por profundas transformacoes no capitalismo posterior a segunda guerra mundial, que Marcuse nomeara mediante distintos sintagmas: "capitalismo avancado", "capitalismo das corporacoes", "sociedade industrial avancada", "sociedade da abundancia", "sociedade do consumo", entre outros. Mais que induzir reparos secundarios a forma de entender a producao de subjetividades no capitalismo tal como pensada pelo, digamos assim, marxismo estrito, Marcuse entendia que aquelas impunham com urgencia nao so uma reformulacao de seus pressupostos e premissas, mas tambem e sobretudo uma abertura do marxismo a outras tradicoes teoricas. Como ele sempre susteve, o marxismo era mais que um conjunto petrificado de ideias e formulas.

Entre estas tradicoes, a psicanalise recebeu um papel de destaque. Deste campo, interessava a Marcuse, antes de mais nada, seu esforco por atribuir estatuto de objeto de estudo pleno ao aparelho psiquico e aos sentidos e formas das producoes inconscientes, em geral, e pulsionais, em sentido estrito. Na verdade, a incursao pelos labirintos do inconsciente respondia a um desafio fatico mais amplo e muito similar aquele enfrentado por outros integrantes da chamada Escola de Frankfurt depois da experiencia do III Reich que, dentre outras coisas, levou Marcuse ao exilio nos EUA, a saber: o bloqueio da revolucao e a adesao de massas ao nazismo.

A questao do bloqueio da subjetividade revolucionaria continuava informando suas reflexoes, mas a partir da decada de 1960 ganharia contornos novos. Agora, passavam a estar em jogo as numerosas e crescentes mudancas na esfera de producao do capitalismo avancado e nas formacoes desejantes da massa de trabalhadores a ela vinculada. Ao incremento das forcas produtivas capitalisticas, principalmente no que se refere ao incremento tecnologico, somava-se uma vertiginosa alteracao da composicao de classe nos ambientes fabris.

Sobre as mudancas na composicao da classe trabalhadora, Marcuse ressaltaria principalmente o aumento no numero daqueles trabalhadores vinculados as tarefas mais qualificadas, incluidos cargos de gestao, em detrimento de trabalhadores ligados majoritariamente a tarefas especializadas. Aos seus olhos, esta modificacao estimulava tambem, com rapidez, uma mudanca na elaboracao de seus interesses, e nosso autor chegara a falar inclusive da formacao de uma "nova aristocracia operaria".

Ja com relacao a subjetividade produzida pela mudanca estrutural do capitalismo avancado, chamava-se em especial a atencao para um tipo preciso de racionalidade, a "tecnologica", cujo principal insumo baseavase na ideia de "eficacia" e "produtividade", capaz de "mobilizar", "incorporar" e "administrar" as "forcas de oposicao" imanentes, que o proprio capitalismo havia se encarregado de gestar ao longo de sua historia em sua "revolucao" contra o mundo "tradicional". O "aumento no padrao de vida" propiciado pelo modo de regulacao fordista e a ideologia a ele ligada lograva, como sustenta Marcuse, hegemonizar-se como principal objeto do desejo de massas.

Tudo somado, a dita combinacao, ao que interessa a discussao dos aspectos propriamente politicos de seus trabalhos, produzia, para Marcuse, um duplo efeito dialetico: por um lado, e como diagnostico, a constatacao de um cenario cada vez mais desalentador de intensa e vampirica integracao das forcas e energias opositoras ao "aparato produtivo", em sua face publica e privada, do "capitalismo avancado"--ai incluidos os organismos de representacao da classe trabalhadora. Mas, por outro, uma viva conviccao de que, dado o aprofundamento e sofisticacao dos mecanismos de dominacao proprios desta fase do capitalismo, apenas o surgimento de uma subjetividade irruptiva, dotada de uma "nova sensibilidade", poderia ser capaz de impugna-los.

E justamente esta aposta que levara Marcuse a interessar-se fortemente pela novidade representada pelos novos movimentos sociais, dentre os quais figurava o movimento estudantil, mas nao so. Identificando-os com a chamada nova esquerda, Marcuse (1979) busca definir o que ela seria, dando coloracoes mais amplas do que aquela existente nos Estados Unidos (2). Segundo ele,

O que distingue e caracteriza essencialmente esse movimento e o fato de que ele redefiniu o conceito de revolucao, agregando a ele as novas possibilidades para liberdade e os novos potenciais para o desenvolvimento do socialismo que foram criados (e imediatamente contra-arrestados) pelo capitalismo avancado. Como resultado destes desenvolvimentos, novas dimensoes de mudanca social emergiram. Mudanca nao e mais definida simplesmente como uma disrupcao economica e politica, com o estabelecimento de um modo de producao diferente e novas instituicoes, mas tambem, e acima de tudo, como uma revolucao na estrutura prevalente de necessidades e possibilidades de sua satisfacao (3). (MARCUSE, 1979, p. 13).

E este trajeto de pensamento, sintetico, mas exemplar, que principia como a selecao de alguns tracos de sua biografia politico-intelectual nos turbulentos anos 1960, que passa por seu diagnostico pessimista acerca da "ideologia" hegemonica do capitalismo avancado e pela constatacao da novidade dos movimentos sociais dessa decada, findando com um balanco sobrio dos avancos e limites dos mesmos, que propomos percorrer no que segue.

A turbulenta aventura californiana de Marcuse

Quando Herbert Marcuse trocou a Universidade de Brandeis, em Waltham/Boston, Massachusetts, onde lecionara de 1954 a 1965, pela Universidade da California (UCSD), em San Diego, talvez nao imaginasse que seu nome estaria indelevelmente ligado aos intensos movimentos que atravessaram a sociedade estadunidense, principalmente na segunda metade de 1960. Nao que ele fosse um completo desconhecido dos movimentos, pois mesmo em Brandeis sempre participou de seminarios e debates envolvendo os estudantes. Mas nada se compararia a dimensao que assumiria na ensolarada California.

Segundo confidenciara a amigos, Marcuse escolhera San Diego por conta de seu zoologico, aficionado que era por hipopotamos. A trajetoria de Marcuse na UCSD sera das mais intensas, marcada por famosos seminarios, participacao em reunioes, debates e movimentos. Na verdade, segundo a lembranca de muitos de seus alunos, Marcuse, frente aos movimentos na Universidade, era geralmente um fator de calma, sempre cauteloso em termos de incitamento a acao. Essas memorias tambem tracam o perfil de um Marcuse como professor exemplar, muito cuidadoso, extremamente lucido, que nao referenciava seus proprios livros nas aulas e desenvolvia uma forma de ensinar sem dogmatismo (MALINOVICH, 1978, p. 364). A pacata cidade de San Diego tinha um lastro conservador marcado, com o qual, muitas vezes, a presenca da universidade se chocava. E, por obvio, a presenca de Marcuse nao passaria despercebida.

Para San Diego, ele trouxe na bagagem o recem-publicado, na saida de Brandeis, O homem unidimensional (1965), e naquela cidade publicara, entre outros textos importantes, dois que fechariam o que pode ser considerado uma "trilogia" em termos de sua trajetoria naqueles tempos: Um ensaio sobre a libertacao (1969) e...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT