Maria do Socorro Santos, um exemplo de vida, arte e trabalho na saúde mental.

AutorVasconcelos, Eduardo Mourão

Maria do Socorro Santos foi uma usuária de serviço de saúde mental que se tornou nossa amiga, companheira da luta antimanicomial, e uma artista de mão cheia, com pinturas que a tornaram conhecida e admirada. Mas antes de tudo, era uma pessoa sensível e dona de uma enorme experiência e sabedoria sobre a vida. Tive uma convivência muito próxima com ela, como amigo pessoal, como parceiro de lutas e como andarilhos comuns no campo da arte. É pela saudade e pela gratidão de ter podido compartilhar de sua amizade, que gostaria de dizer algumas palavras sobre ela, particularmente para aqueles que não tiveram esta oportunidade de conhecê-la de perto.

Socorro nasceu no Nordeste, em 1953, em ambiente rural distante e muito pobre. Em sua história de vida, viveu na própria pele as situações mais radicais que os pobres, oprimidos(as), discriminados(as), desviantes e excluídos(as) deste país experienciam. Começou a ter problemas mentais desde cedo, e logo perdeu o suporte dos pais. Começou a frequentar a escola com muitos sacrifícios pessoais aos 8 anos, e tinha de se levantar às 5 da manhã para chegar lá a pé, voltava e trabalhava a partir do meio-dia na roça. Aos 15, foi expulsa da escola, devido aos problemas mentais. Segundo ela, a partir do que viveu nessa fase, "pobre só tem direito de passar fome e sofrer". Migrada sozinha para a cidade do Rio de Janeiro, sem ter inicialmente onde morar, conheceu aquilo que o antropólogo Roberto da Matta identifica como uma das formas mais dramáticas de opressão sociocultural neste país: ser apenas um anônimo na multidão, fora de sua terra, em uma sociedade hierárquica, na qual o poder e o apoio social dependem fundamentalmente dos laços de conhecimento pessoal. Felizmente, conseguiu trabalhar por algum tempo como auxiliar de produção e operadora de máquinas em uma metalúrgica, mas se revoltou com a intensificação do ritmo de trabalho, com o autoritarismo do supervisor e com o risco de ter um acidente na máquina perigosa que operava, e foi demitida. Experimentou também o trabalho como empregada doméstica. Uma vez, comentou rapidamente, sem dar mais detalhes, o fato de ter perdido uma filha de quatro anos, por atropelamento. Chegou a ter problemas relacionados ao uso de álcool, e em suas crises psíquicas, foi internada 25 vezes, normalmente em hospitais psiquiátricos convencionais.

Assim, quando a conhecemos, ao estigma e mortificação associados a esta condição de psiquiatrizada, se expressavam também todas as outras formas de opressão e discriminação: a de ser mulher, negra, migrada, pobre, de baixa escolaridade, e sem família. Contudo, à medida que a reforma psiquiátrica foi tomando corpo e sendo implementada no país, Socorro pôde vivenciar também um pouco daquilo pelo que lutamos: a construção de formas concretas de solidariedade e dignidade para os até então chamados apenas de loucos e "doentes mentais", e a possibilidade de recuperar, ao seu próprio ritmo e forma, uma vida pessoal ativa, singular, cheia de novos significados, e participativa na sociedade. Este processo se iniciou no Hospital de Jurujuba, em Niterói, estado do Rio de Janeiro, quando ali se iniciaram os primeiros dispositivos internos de mudança e de implementação de serviços extra-hospitalares. Socorro depois vivenciou os serviços de saúde mental abertos e comunitários, os nossos centros de atenção psicossocial, nos quais avançou seu processo de recuperação. Lá percebeu e desenvolveu suas vocações pessoais, dentre as quais a de imensa solidariedade e formas de apoio mútuo para seus companheiros, as(os) usuárias(os) de serviços, em suas dificuldades do dia a dia, e principalmente - a grande paixão de sua vida -, a pintura.

Neste caminho, foi adotada pelo antigo Instituto Franco Basaglia (IFB), conhecida ONG da luta antimanicomial e de defesa dos direitos no campo da saúde mental na cidade do Rio, na qual encontrou um verdadeiro acolhimento, pôde consolidar seu processo de recuperação e desenvolver seu trabalho de apoio mútuo e pintura, como também abraçando de corpo e alma a causa da Luta Antimanicomial. No IFB, tendo assumido um dos cargos de diretoria na função de primeira secretária, realizava trabalhos de apoio administrativo, e principalmente, atividades de suporte mútuo e de desenvolvimento da autonomia entre usuárias(os) e familiares, bem como exercia o papel de representante destes junto a órgãos públicos e de formação profissional. Por exemplo, não era raro achá-la dando palestras para alunos de graduação e profissionais formados, das áreas de psicologia, enfermagem, serviço social, psiquiatria, terapia ocupacional e outras profissões, quando falava da visão das(os) usuárias(os) e familiares, e de como gostariam que fossem tratados nos serviços e no trabalho profissional no campo da saúde mental. Sobre esta sua luta, ela mesma afirmava: "queremos uma sociedade em que ninguém vai te excluir, mas sim incluir. A nossa sociedade vai ser igual à sociedade de cada um". Participou de inúmeros encontros regionais e nacionais da luta antimanicomial, até mesmo representando o IFB. A partir de 2001, nós, do Projeto Transversões, da Escola de Serviço Social da UFRJ, também a adotamos, e com ela vínhamos desenvolvendo algumas idéias e projetos, particularmente na promoção de...

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