Masculinities and Diaspora: class, racializations and feminization of the Other/Masculinidades e Diaspora: classe, racializacoes e feminizacao do Outro.

AutorAboim, Sofia
  1. Homens nas Margens: subalternidade e hegemonia

    A expansao de processos transnacionais e globais (do capitalismo a cultura) abriu caminho a novas formas de construcao das masculinidades nas sociedades contemporaneas. Os movimentos migratorios do sul global para o norte global produzem novos desafios para muitos homens, nas suas vidas individuais, e para as ordens de genero, enquanto estruturas institucionais. De facto, os constantes fluxos de corpos, informacao e imageticas de masculinidade, rapidamente deslocaveis de um contexto social para outro, tem colocado estimulantes e dificeis reptos a investigacao sobre os homens e as masculinidades (Hearn, 2015).

    Estes desafios necessariamente nos levam a reconsiderar criticamente a nocao de masculinidade hegemonica, bem como as dinamicas de poder que sustem hierarquias gendrificadas de uns sobre outros, tal como Hearn (2009) indicou com o seu conceito de transpatriarcados. Por estas razoes, avancar numa reflexao fundamentada sobre como homens em posicoes subordinadas (re)constroem as suas identidades e praticas por referencias as normas de poder masculino, sucesso, virilidade e racialidade branca (os principios-chave sustentadores da masculinidade hegemonica), e de primordial importancia.

    Concentrando-nos em diferentes categorias de homens imigrantes no Portugal contemporaneo e a partir de uma analise tematica sintetica dos dados, procuramos contribuir para um conhecimento empirico do 'subordinado' face ao hegemonico, bem como explorar os modos atraves dos quais identidades etnicizadas sao construidas de forma gendrificada por homens que vivem processos de deslocacao. Adicionalmente, procuramos examinar as fronteiras complexas entre o subordinado e o dominante, tal como discutir o conceito de masculinidade hegemonica e os problemas que levanta. A nossa preocupacao central, indo das margens para o centro, foi a de investigar os processos de construcao das masculinidades nao-hegemonicas nas margens do padrao dominante--o do homem profissionalmente bem-sucedido, poderoso e sobretudo europeu ("branco" nao-racializado).

    Na perspectiva que desenvolvemos, dando relevo as masculinidades migrantes, a diferenciacao entre subordinacao e dominacao nao e clara, ja que nao pode ser conceptualizada fora de uma visao que de conta da complexidade do processo de producao da diferenca e alteridade. Por outro lado, a enfase na alteridade (Taylor, 1989) implica que perspectivemos a masculinidade como uma estrutura complexa de capitais mobilizados em permanentes lutas pela identidade como elemento de demonstracao de uma forma de supremacia historica e socialmente contextualizada (Hall, 1990). Estas lutas reinventam um poder do subordinado que, mesmo que problematico e guetizado, pode contribuir decisivamente para transformar o que a masculinidade hegemonica representa e, assim, levar-nos a questionar o que o proprio conceito significa, por oposicao ao que nao e hegemonico. Em suma, olhando para as margens torna-se talvez mais facil desenredar as imageticas e mesmo as contradicoes simbolicas do centro, ao mesmo tempo que, como propos Homi Bahabha (1994) se reecontra a agencia associada ou mesmo promovida pela condicao, sempre situacional, da subalternidade.

    A partir da decada de 1980 iniciou-se um vasto debate sobre as masculinidades transnacionais (Connell e Messerschmidt, 2005), que levou a novas preocupacoes de investigacao. Um importante tema tem sido o dos fluxos transnacionais de homens migrantes, em regra deslocando-se de paises mais pobres do hemisferio sul para sociedades nacionais mais ricas do hemisferio norte, em busca de melhores condicoes economicas e de vida, frequentemente enfrentando dificuldades nao antecipadas ou mesmo a desilusao face ao que projectavam. A pesquisa focada em homens migrantes tem vindo a desvendar as formas como masculinidades subordinadas e nas margens sao frequentemente compelidas a mudar, pelo menos nalgum grau, quando os homens tem de se ajustar a diferentes ordens de genero e a diferentes concepcoes e definicoes sociais de masculinidade hegemonica (Donaldson et al., 2009; Howson, 2009).

    Uma masculinidade valorizada pode ser muitas coisas diferentes e levada a cabo de multiplas maneiras. A miriade de simbolos associados a masculinidade e ao poder masculino permite aos homens a reconstrucao da sua posicao como sujeitos dominantes de formas igualmente multiplas, pelo menos discursivamente. Mas o discurso tambem e poder, ainda que nao devamos esquecer a base material de qualquer desigualdade. Homens imigrantes pobres nao sao poderosos, se definirmos poder em termos estritamente materialisticos, mas a sua subordinacao global nao os inibe de aspirar ao poder, seja ele material ou simbolico. Uma aspiracao que tentam alias demonstrar e realizar, particularmente em relacao a mulheres, mas tambem em relacao a outros homens, atraves de estrategias praticas e discursivas.

    A reconstrucao contemporanea das masculinidades gera uma talvez mais complexa hegemonia dos homens (Hodgson, 2001; Cornwall e Lindisfarne, 1994; Howson, 2009; Ong, 1999). Num mundo abalado por mudancas massivas nas relacoes de genero, as vidas e identidades dos homens estao tambem em alteracao, assim revelando, a um nivel microsocial, a multiplicidade (Eisenstadt, 2000) e o emaranhamento das modernidades (Therborn, 2003).

    Do ponto de vista do poder masculino no presente Portugal poscolonial e europeista, os homens imigrantes dao por si enredados entre diferentes 'mundos' de sentido. As relacoes de genero nao sao imunes a mudancas globais, mas estao a desenvolver masculinidades hibridas e nao apenas adaptativas aos modelos dominantes nas sociedades da Europa ocidental. Neste sentido, as masculinidades constituem um objecto e uma perspectiva de investigacao que implicam multiplos niveis de analise articulados entre si. E assim necessario o desenvolvimento de uma articulacao entre abordagens materiais e discursivas do poder, evitando-se simultaneamente quer a reificacao de uma qualquer masculinidade, quer a sua dissolucao numa pletora infinda de discursos. Nao obstante, ao afirmarmos que as masculinidades sao multiplas e que e reducionista falar de homens e de masculinidade como categorias uniformes, cairiamos igualmente em erro se esquecessemos que o poder dos homens e estrutural. O poder masculino da assim forma a padroes societais consistentes, ao mesmo tempo que e tambem culturalmente moldavel e individualmente incorporavel de formas flexiveis (Connell e Messerschmidt, 2005; Hearn, 2004). Advogar tal estrategia conceptual e metodologica implica lidar com conceitos como patriarcado e masculinidade hegemonica sem, contudo, perder de vista a dominacao e o poder como um conjunto de processos fluidos e ate contraditorios, operando a multiplos niveis e em ultima analise constitutivos dos proprios sujeitos (Foucault, 1977).

    Neste sentido, uma discussao da definicao de Connell das masculinidades como configuracoes multiplas hierarquicamente organizadas e central. Contudo, se colocarmos os processos da dominacao masculina no centro das relacoes de genero temos ainda de encontrar instrumentos conceptuais que compreendam a dominacao como estrutura, discurso e agencialidade. A este respeito, a nocao marxista de 'apropriacao' pode ser util, caso se consiga ultrapassar uma definicao materialista e se consiga expandir o conceito de apropriacao a cultura e aos bens simbolicos, bem como a agencia e a incorporacao. O processo de incorporacao (Bourdieu 1977) implica apropriacao, e esta e sempre um processo de poder. Baseando-se no trabalho de Bhabha (1994) sobre apropriacao e mimetismo, Demetriou (2001), entre outros, argumentou para que as masculinidades--particularmente a hegemonica--sejam concebidas como apropriando tracos de masculinidades nao-hegemonicas. A este respeito, as masculinidades sao socialmente constituidas atraves de complexas lutas pela aquisicao e realocacao de certos simbolos e posicoes materiais. A incorporacao e performatividade do genero, ainda que ligadas a diferenciais de poder, implicam processos de apropriacao que devem necessariamente ser vistos como dinamicos e fluidos. Em consequencia, uma reflexao sobre o poder e a hegemonia deve sempre considerar o caracter hibrido da masculinidade.

    Nas suas praticas, os homens usam permanentemente referencias variadas, embora nao propriamente atraves das mais pacificas negociacoes. A masculinidade hegemonica nao e apenas um simbolo de dominacao sobre as mulheres e outras formas de masculinidade, mas e antes particularmente dependente de tensoes internas. Uma dificuldade adicional emerge sempre que se procura tracar as principais caracteristicas da hegemonia. Por outras palavras, o problema principal e porventura o de encontrar uma forma heuristica de distinguir entre o que e hegemonico e o que nao e e em que contexto tal assim e.

  2. Homens migrantes numa sociedade pos-colonial

    Este artigo desenvolve-se a partir de uma analise das masculinidades diasporicas de homens imigrantes que vivem na capital portuguesa, Lisboa, concentrando-se particularmente em homens brasileiros. Este trabalho fez parte de um projecto de investigacao mais vasto sobre homens nao-dominantes e as suas estrategias para lidar com a subalternidade e a dominacao. A seleccao de homens imigrantes, num total de 45 entrevistas em profundidade, procurou alcancar uma vasta diversidade de historias coloniais e pos-coloniais face ao centro colonizador.

    A maioria dos entrevistados (20) foram brasileiros, hoje o mais importante grupo migrante na sociedade portuguesa. As relacoes do Brasil com a antiga potencia colonial sao ambiguas, ainda que o Brasil possa ser caracterizado como uma sociedade de povoamento colonial (com importantissimos contributos africanos e indigenas, quer demograficamente, quer culturalmente). Por um lado, a independencia brasileira foi alcancada bastante cedo, em 1822, tendo a sociedade brasileira sido desde sempre recipiente de migrantes...

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