Estado, Mercado e Sociedade

AutorAntonio Augusto Cruz Porto
Páginas23-42

Page 23

Embora o espaço destinado a uma análise acadêmica deva, tanto quanto possível, escapar de conceitos hasteados em avaliações incidentes em lugares-comuns, situações há em que é necessária a busca de fundamentos teóricos clássicos, cujas linhas normalmente formam a pedra-angular das doutrinas atuais, seja porque, num ou noutro espaço histó-rico, serviram as últimas para contrapô-las, seja porque foram escritas em consonância ou a partir daqueles textos de base. O tempo1faz a história2e a passagem dele permite que novos conceitos surjam, tanto com vistas a modelar os aspec-

Page 24

tos atuais da vida social, quanto para reavaliar ou reanalisar obras precedentes, intuindo transpô-las à contextualização consentânea.

O título ofertado ao capítulo conforma, em si mesmo, polos sociais formatados em abstrações jurídicas3cujas ambições, quando miradas em aparte - ou seja: quando observadas de maneira individualizada -, podem soar, ainda que aparentemente, bastante dissonantes e, até mesmo, conflitantes. Enquanto o mercado, de natureza social e jurídica já definida por Avelãs Nunes4, conduz à ideia de um ambiente em que se realizam negócios visando puramente ao lucro, a sociedade detém em seu cerne o interagir de pessoas que, como tais, compreendem aspirações geralmente ligadas à noção de bem-estar. A seu turno, o Estado, que em uma pirâmide imaginária

Page 25

poderia ser alçado ao ápice, antepõe-se a ambos como uma espécie de mediador, ora cedendo a interesses - concretizados em forma de pressões públicas ou mesmo camufladas - mercadológicos com vistas a elastecer a amplitude das chamadas regras de mercado ou princípios do mercado5, ora interferindo na esfera privada objetivando a concretização de direitos programados por uma Ordem Constitucional superior6.

Esta visão, no entanto, é puramente elucubrativa. É cediço que, em uma estrutura social complexa como a que se põe diante de nosso tempo, o estudo da sociedade, do mercado e, consequentemente, do papel do Estado no contexto de uma ordem mundial caracterizada pelo multiculturalismo e plenamente multilateralizada é substancialmente mais intrincado. Tratá-los e abordá-los de maneira independente e autônoma, quase como se cada qual formasse um lado distinto e distante em um triângulo, é cegar-se à realidade. Convivem o mercado, a sociedade e o Estado dentro de um mesmo ambiente social e, tanto por isso, estão sujeitos a sofrer, em conjunto ou mesmo

Page 26

separadamente, os efeitos de toda e qualquer crise, seja de natureza jurídica, econômica, política, social ou ambiental.

É, tanto por isso, que se procura iniciar o estudo a ser desenvolvido na presente obra a partir de uma sucinta - e, portanto, certamente superficial - ponderação acerca de concepções teóricas dessa tríade, que, no cenário atual, forjam a base de toda a estrutura social moderna.

Um desses lugares-comuns7não raro referenciado pelos cientistas políticos é a teorização da sociedade a partir da ideia concebida pristinamente por Aristóteles, no sentido de que o homem, por natureza, é um animal social e político e, como tal, imprescinde da vida coletiva por dotar intrinsecamente de instintos de sobrevivência. Assinala o filósofo que, coletivamente, o homem detém maiores chances de sobreviver às inconstâncias do mundo8e, nesse compasso histórico, associando-se a outros pares - inicialmente com membros da própria família e, posteriormente, jungindo-se a outros tantos - é que se desencadeiam as primeiras vilas, aldeias, clãs e comunidades9. Evoluindo, o homem se alia a outros homens

Page 27

sob a órbita de um eixo comum, hierarquizado por alguma forma de autoridade pessoal ou patriarcal10e construído em um ambiente territorial delimitado, revelando-se, assim, os primórdios da sociedade11 - 12.

Nesse caminhar adiante, as primeiras pontuações sobre a formação do Estado decorrem exatamente de Aristóteles, a partir de ponderações sobre as cidades-Estado da Grécia Antiga. Certamente, longe de possuir um arcabouço estrutural administrativo tal e qual os modernos Estados o detêm, a polis grega conjuga alguns de seus elementos primitivos (por exemplo, as ideias de unificação territorial e de bem comum), podendo-se assentar, ao menos em sentido etimológico, que a expressão conotativa e terminológica do Estado de lá advém, ainda que em um viés associativo13. A despeito disso, sobre-

Page 28

tudo por não se buscar, aqui, perscrutar fundamentalmente a origem do Estado14ou de suas especificações de ordem política, mas, sim, de estabelecer suas conexões com os demais ramos sociais (mercado e sociedade) no aspecto do intervencionismo na atividade econômica, há de se restringir o campo de abordagem a um dado período histórico.

Há inúmeras teorias voltadas a explicar a origem e o porquê do aparecimento do Estado, mesmo sobre as razões pelas quais a sociedade humana dele necessitou. Dalmo de Abreu Dallari, ao estudá-las, ressalta que "entre os motivos mais fre

Page 29

quentemente apontados está a necessidade natural, afirmando-se que, assim como o homem vive necessariamente em sociedade, esta não pode, por sua vez, prescindir do Estado"15.

O Estado de que se está a tratar, portanto, é o Estado dito moderno16e, pois, de raízes congruentes ao nosso tempo, originalmente marcado pelas Revoluções liberais do século XVIII - notadamente as Revoluções Americana de 177617e

Francesa de 1789 -, dotado de específicos elementos de fato (estrutura organizacional administrativa hierarquizada) e de direito (subjacente a uma ordem constitucional expressa) que o conotam e o caracterizam18. Este molde de Estado, advindo do rompimento com os componentes da ordem jurídica ante-riormente fulcrada no Absolutismo monárquico19, é fruto de

Page 30

uma ascensão da classe burguesa a degraus mais elevados de poder, que alterou tanto suas estruturas sociais, quanto sua sistematização política e jurídica, as quais passam a sofrer total ingerência de um sistema constitucional garantista20.

Ao tempo que o precedeu, não havia descentralização administrativa, nem para fins fiscalizatórios nem tampouco para fins sancionatórios, ao passo em que "dentro do Estado, todos os poderes estavam centralizados nas mãos do soberano, a quem cabia editar leis, julgar os conflitos e administrar os negócios públicos. Os funcionários só exerciam poder por delegação do soberano, que jamais o alienava"21. Na Idade Contemporânea, porém, a partir das já citadas Revoluções Americana e Francesa, exsurge o "conceito de Estado de Di

Page 31

reito, isto é, de um Estado que realiza suas atividades debaixo da ordem jurídica, contrapondo-se ao superado estado-polícia, onde o poder político era exercido sem limitações jurídicas, apenas se valendo de normas jurídicas para se impor aos cidadãos"22.

O Estado de Direito, portanto, exerce seu múnus dentro de um quadro normativo que lhe é superior e que, também, delimita e define a esfera de liberdade dos indivíduos frente à Administração Pública. Tal situação faz erigir, agora de modo bastante formal23, uma separação entre as esferas pública e privada, dando ensejo a uma das grandes dicotomias do Direito, consoante assinala Norberto Bobbio:

Um dos lugares-comuns do secular debate sobre a relação entre a esfera do público e a do privado é que, aumentando a esfera do público, diminui a do privado, e aumentando a esfera do privado diminui a do público; uma constatação que é geralmente acompanhada e complicada por juízos de valor contrapostos.

Não obstante o secular debate, provocado pela variedade de critérios à base dos quais foi justificada (ou se acreditou poder justificar) a divisão das duas esferas, o critério fundamental permanece sendo aquele dos diversos sujeitos a que se pode referir a noção geral de utilitas: ao lado da singulorum utilitas da definição citada, não se deve esquecer a celebre definição ciceroniana de res publica, segundo a qual essa é uma coisa do povo desde que por povo se entenda não

Page 32

uma agregação qualquer de homens, mas uma sociedade mantida junta mais que por um vínculo jurídico, pela utilitatis comunione.24Nessa medida, subdividindo-se a estrutura organizacional em dois campos abstratamente distintos, a sociedade civil25aparta-se do Estado transformando-se em uma seara em cujas inter-relações refletir-se-iam apenas normas de caráter privado; noutro ponto, ao Estado e suas relações com a esfera privada, as normas de direito público é que ganham prevalência, em uma clara divisão de espectros sociais26(Estado versus sociedade).

Desta ambivalência de concepções, notadamente sob o enfoque do Direito Constitucional Econômico - que, especificamente, é a seara que mais interessa ao presente estudo -, podem-se extrair as noções de atividade econômica em sen-

Page 33

tido amplo e de suas ideias derivativas, sobretudo porquanto nelas e nos conceitos que a subdividem em serviço público e atividade econômica em sentido estrito denota-se claramente a existência de uma implicação separada às funções que, originariamente, seriam de iniciativa do Poder Público e àquelas que, por definição, caberiam precipuamente à livre iniciativa do particular. Acerca desses temas ingressar-se-á mais adiante, porém, por ora, releva considerar apenas a ocorrência dessa divisão de atividades, a qual certamente se origina das percepções relativas à dicotomia público/privado27.

O mercado, de seu viés, é um termo polissêmico28e um fenômeno poliédrico. Nas palavras de Paula Forgioni, "apresenta-se anônimo e independente da vontade de alguém, mas assume marcante personalidade, a ponto de ser referido não apenas como pessoa, mas, às vezes, como deus, cuja vontade é impossível contrariar"29. Implicitamente, envolve a própria

Page 34

noção de comunidade, já que, sem mercado, inexistem opera-ções de trocas e, sem trocas, a economia estanca, estagnando também o desenvolvimento30.

Como alerta Karl Polanyi, "a origem das instituições de mercado é um assunto intrincado e obscuro, ainda que os mercados não sejam...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT