Os modos de vida das musicistas no Rio de Janeiro oitocentista/The ways of life of 19th-century female musicians in Rio de Janeiro.

AutorPaixao, Alexandro Henrique

Introdução

Como instância de consagração, a historiografia musical, até hoje, apresenta poucos registros sobre a participação feminina no cenário musical carioca dos oitocentos. Muito embora saibamos que a constituição de grupos sociais artísticos brasileiros nesse tempo e espaço contou com a participação social de ambos os sexos, o problema eminentemente sociológico da ausência de mulheres musicistas na historiografia ainda carece de reflexão. Tentando reparar, mesmo que parcialmente, esse vazio, o texto enfatizará o trabalho musical feminino, algo que aponta para o surgimento de uma profissão possível para as mulheres no século XIX.

O convite feito pelo presente texto consiste em analisar a ação dessas musicistas na sociedade fluminense dos oitocentos como uma expressão do feminismo nascente nesse período (1). Compreender a luta pela sobrevivência e sustento familiar por meio da música configura um modo não convencional de reação das mulheres e, portanto, uma nova abordagem sobre o feminismo no século XIX no Brasil; afinal, são modos de resistir e refazer a imagem sobre o ser feminino no país.

Para tornar conhecido esse contingente feminino, faremos uso de um método de investigação envolvendo a pesquisa de palavras-chave na Hemeroteca da Fundação Biblioteca Nacional no interior de algumas páginas da imprensa oitocentista. Tal método se inspira nas análises de Raymond Williams (2007) sobre o contexto inglês, que, guardadas as devidas proporções, foi reorientado para a compreensão do contexto brasileiro através da pesquisa em fontes primárias.

A partir das palavras-chave "compositora", "musicista", "pianista" e "professora de piano", partimos para uma pesquisa documental no acervo do Jornal do Commercio, no qual encontramos 84 nomes de mulheres que se ocupavam da atividade de ensino de piano e de canto e 101 nomes de compositoras no mesmo período. Cabe lembrar que havia mais mulheres para além das 84 referidas, contudo, elas não se apresentavam com seus nomes de batismo ou artísticos, por isso não pudemos contabilizá-las. Todavia, ao registrar o trabalho e as obras daquelas que se apresentavam com nome, estaremos de alguma maneira nos remetendo ao modo de vida de um grupo de artistas mulheres como um todo.

A pesquisa sobre o tema demonstra a relevância do ensino de música no plano de estudos de uma educação feminina. Tendo em vista que a forma socialmente aceita para uma mulher sobreviver naquele momento-e garantir a subsistência familiar, em muitos casos-foi por meio do ensino de piano e de canto, o objetivo deste texto é justamente esboçar quem eram essas artistas, o que faziam e como faziam, de modo geral, mas também exemplificando com algumas trajetórias. O intuito, portanto, é o de reconstituir as experiências femininas que a história oficial insiste em não contar.

A imprensa carioca, mais especificamente a seção de anúncios, é o principal locus de pesquisa para uso desse método das palavras-chave. É neste espaço que se prova a existência de muitas professoras de piano, intérpretes e compositoras, sujeitos dessa pesquisa. Privilegiamos os jornais como fonte de pesquisa por serem compreendidos como meio de comunicação mais popular, voltados a assuntos ordinários de interesse comum e transmitidos no vernáculo. Nesse sentido, a linguagem escrita é pensada aqui como prática social e a ela está atrelado o desenvolvimento dos sentimentos populares de um tempo passado.

A intensa atividade de educação musical, as programações de concertos e os serviços editoriais de música que demonstram os anúncios do Jornal do Commercio, bem como outros periódicos analisados entre os anos de 1808 a 1899, são indicativos de uma ambiência favorável à circulação dessas mulheres musicistas, profissionais e amadoras, em espaços diversos da sociedade brasileira oitocentista, sobretudo na capital do Império. Sua atuação profissional se dava do ambiente doméstico das casas grandes (com as aulas particulares) aos salões aristocráticos (nos saraus e nos bailes), nos concertos em teatros e clubes e em espaços sociais mais restritos, como os colégios. Esse tipo de atividade feminina indica ainda um expediente comum entre as mulheres que de alguma maneira precisavam garantir seu sustento, seja por uma necessidade imposta por sua origem social, seja pela condição de imigração ou por uma fatalidade qualquer que as fez perder seus bens originais (endividamento familiar, falência ou perda de um parente).

É preciso dizer que numa sociedade de caráter patriarcal e de estrutura estamental-escravista, como a fluminense dos oitocentos2, que negava, sobretudo, o direito ao trabalho às mulheres das camadas sociais média e alta, a possibilidade de inscrição profissional feminina por meio do magistério e da música constituiu um avanço em seus modos de vida, um assunto que queremos introduzir e discutir. Sempre que utilizamos o termo modos de vida, estamos nos referindo à cultura de uma época como um processo social geral de "preenchimento completo da vida social", o qual se constrói com base na experiência cotidiana. Trata-se de uma escolha teórica apoiada no debate que vê "a cultura como algo comum", como pensado por Raymond Williams (2015), do qual nos apropriamos para refletir sobre o contexto da cultura brasileira oitocentista.

Os modos de vida das musicistas na sociedade fluminense

As mulheres que encontramos nesta pesquisa de doutorado em andamento eram contratadas não somente como professoras de piano e de canto (modo como se apresentavam nos anúncios), mas como professoras de línguas estrangeiras (francês, português, alemão e italiano), de humanidades (história, geografia, primeiras letras e desenho), de trabalhos de agulha (bordados) e também como governantas nas casas de boa reputação. Eram, em sua maioria, estrangeiras, mulheres idosas, de meia idade, viúvas ou jovens solteiras, recém-chegadas ao Brasil. Mas a partir da segunda metade do século XIX, começaram a aparecer mulheres brasileiras desempenhando essa atividade de ensino. Geralmente, ofereciam seus préstimos ou eram procuradas para atuar em colégios internos, em casas particulares ou em sua própria residência, e tinham como público-alvo meninas das chamadas boas famílias. Essas artistas se comprometiam a oferecer todas as matérias necessárias para a educação de uma senhora da alta sociedade, sob uma referência de padrões europeus da época (3).

Elas apresentavam seus anúncios de trabalho ou eram procuradas geralmente entre as páginas destinadas aos anúncios diversos, tais como: venda, aluguel e recompensa pela captura de escravos fugidos, divulgação de serviços e produtos relacionados à saúde e à higiene, leilões diversos, serviços relacionados ao comércio de alimentos, serviços e produtos relacionados ao vestuário, aluguel de imóveis e de pessoas para trabalhos eventuais em residência e no comércio. A esse respeito, a professora de piano alemã, de línguas estrangeiras (alemão, inglês e francês) e de canto Ina von Binzer (1994, p. 67) fez um importante comentário: "[...] ando procurando no Jornal do Comércio o que me possa servir, entre os anúncios de pretos fugidos...

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