A mulher do discurso juridico/The Woman of Legal Discourse.

AutorSmart, Carol

Introducao (1)

A teoria feminista sociojuridica tem se desenvolvido de modo instigante e (felizmente) polemico nos ultimos vinte anos. E possivel afirmar, com relativa seguranca, que os progressos observados nessa area se equiparam aos desdobramentos do pensamento feminista em outros campos. Esse paralelo nao deveria ser motivo de espanto; contudo, o direito suscita, para a teoria feminista, questoes intelectuais e politicas bastante especificas, que nao necessariamente sao encontradas em outras areas (2). Esses problemas apresentam tres ramificacoes e sao surpreendentemente acumulativos, levando-se em consideracao que se originam em vertentes distintas. A primeira delas, que pode ser chamada de vertente "da letra negra" (3), ou do direito inquestionavel, manifesta resistencia a ideia de a analise teorica ser relevante para o direito fora dos limites dos cursos sobre a propria disciplina do direito. A segunda, por sua vez, exprime resistencia a ideia de que uma teoria especificamente feminista e relevante ao direito, porque este ja teria transcendido--ao menos na maioria dos paises desenvolvidos--o "vies sexual". Trata-se da vertente liberal. A terceira linha evidencia uma forma de resistencia a toda e qualquer teoria, com base no argumento de que, como o direito e uma pratica que produz consequencias materiais para as mulheres, a resposta necessaria teria de surgir no ambito da pratica em sentido contrario, e nao da teoria. E uma vertente que demanda engajamento "de acao", continuamente considerando inadequada a (mera?) pratica teorica. Esse argumento e usado por determinadas correntes feministas que definem o 'teorizar' como algo masculino. Nesse sentido, as tres vertentes mencionadas apresentam um grande obstaculo as defensoras da teoria feminista do direito, visto que elas se deparam (nos nos deparamos) com a frustracao de serem (sermos) ignoradas ou vistas como ultrapassadas dentro do direito e pelo direito, alem de, ao mesmo tempo, serem (sermos) compelidas a renunciar a teoria devido ao imperativo moral de agir de forma pratica dentro do direito ou por meio dele.

A teoria feminista sociojuridica, porem, se depara com outra dificuldade. Apesar de sempre ter existido uma tensao acerca da tentativa de "usar" o direito para as "mulheres", o desafio atual esta no fato de essa tensao ter assumido uma nova cara. Ela se expressava tradicionalmente na assercao de que o direito, por ser um efeito epifenomenico do patriarcado, dificilmente poderia ser usado para desestruturar o proprio patriarcado. Por mais atraente e sucinto que esse posicionamento possa parecer, hoje reconhecemos que tal visao e, ao mesmo tempo, uma simplificacao excessiva e uma receita para o desespero: teorizar que tudo e efeito de um patriarcado monolitico faz do feminismo, na melhor das hipoteses, pouco mais que uma falsa consciencia e, na pior, um mecanismo de sustentacao da propria estrutura patriarcal.

Nossas teorias sobre genero e sobre direito avancaram, mas tambem houve outro desenvolvimento importante. Com a chegada das feministas ao direito, este passou a ser um lugar de luta e nao apenas uma ferramenta de luta. Entretanto, o aumento no numero de academicas feministas no direito e de advogadas atuantes (ironicamente) levou a consequencias, a meu ver, contraditorias. Aplaudo a primeira delas, que e certo refinamento das teorias do direito, em particular no tocante a logica e aos metodos juridicos. A segunda, talvez mais problematica, e o renovado vigor na tentativa de empregar o direito na causa das mulheres (4). Minha preocupacao a respeito desta ultima nao e uma tentativa de ressuscitar o velho argumento que acabei de rejeitar acima, mas reflete meu receio de que essa estrategia, mesmo renovada, continue a alocar ao direito uma posicao especial na resolucao de problemas sociais. Essa tendencia, provavelmente mais evidente na America do Norte (5), e falha por nao desafiar a visao inflada que o direito tem de si mesmo, empoderando-o ainda mais (SMART, 1989) e acentuando seu alcance imperialista (6). O movimento de usar o direito a favor das "mulheres" tambem colide com o reconhecimento, recente e profundo na teoria feminista, proveniente de outras disciplinas, de que evocar uma categoria nao problematizada de Mulher, presumidamente representativa de todas as mulheres, e, em si, uma estrategia excludente (cf. SPELMAN, 1988). Contudo, antecipo aqui meus argumentos e, por isso, gostaria de retornar ao estagio anterior no mapeamento da teoria feminista sociojuridica. Para tanto, concentro-me em dois pontos relacionados. O primeiro trata da questao de como o direito e gendrado (7), e o segundo examina o proprio direito como uma estrategia que produz genero.

  1. Como o direito e gendrado

    Podemos identificar tres estagios no desenvolvimento da ideia de que o direito e gendrado. Fundamentalmente, sao fases de reflexao na teoria feminista que forneceram um alicerce de entendimento e que foram ampla, mas nao completamente superadas (cf. NAFFINE, 1990) (8). O primeiro estagio e ilustrado pela frase "o direito e sexista"; o segundo, por "o direito e masculino", e, finalmente, chegamos ao ponto em que podemos alegar que "o direito e gendrado". E possivel encontrar esses tres niveis de argumentacao empregados simultaneamente em alguns trabalhos feministas sobre o direito, mas e importante diferencia-los para podermos identificar a promessa analitica presente em cada abordagem.

    1. O direito e sexista

      O ponto de partida da abordagem "o direito e sexista" (9) foi o argumento de que, ao fazer uma diferenciacao entre homens e mulheres, o direito ativamente colocou as mulheres em desvantagem por conceder-lhes menos recursos materiais (por exemplo, no casamento e no divorcio); julga-las de acordo com padroes desiguais e inapropriados (por exemplo, como sexualmente promiscuas); negar-lhes oportunidades iguais (como ocorreu no que ficou conhecido como the persons cases (SACHS; WILSON, 1978)) (10) ; ou deixar de reconhecer os danos causados as mulheres porque esses mesmos danos beneficiavam os homens (como ocorre com as leis sobre prostituicao e estupro, por exemplo). Esses foram (e ainda sao) questionamentos importantes, mas o atributo "sexista" com certeza funcionou mais como uma estrategia de redefinicao que como um modo de analise. Portanto, o uso do termo "sexista" foi uma maneira de desafiar a ordem normativa do direito e de reinterpretar as praticas mencionadas como indesejaveis e inaceitaveis.

      O direito e inegavelmente sexista em um nivel. Entretanto, reconhecer esse fato nao fez com que se passasse a lidar, de verdade, com o problema posto pelo direito; eu diria, ainda, que se trata de um fator que acarreta uma representacao um pouco equivocada desse problema. O argumento de que o direito e sexista sugere ser possivel corrigir uma visao enviesada que se tem sobre determinado sujeito (a mulher) que, na realidade, se coloca perante o direito de forma tao competente e racional quanto um homem, mas e erroneamente considerado incompetente e irracional. Essa retificacao indica que o direito sofre de um problema de percepcao que pode ser corrigido para que todos os sujeitos juridicos passem a ser tratados com igualdade. Nao se trata, em absoluto, de uma argumentacao simplista. E estruturada em niveis distintos de sofisticacao, desde aqueles que sugerem que a adocao, no direito, de uma linguagem neutra de genero nos livra do problema da diferenciacao e, por conseguinte, da discriminacao (ex. no ingles, o uso de spouse no lugar de wife; parent no lugar de mother) (11), ate aqueles que reconhecem a discriminacao como parte de um sistema de relacoes de poder que deve ser problematizado antes que o sexismo possa ser "extirpado" do direito. Para o primeiro grupo, o sexismo e um problema de superficie com o qual se deve lidar por meio de programas de reeducacao e politicas rigorosas que objetivem esconder qualquer sinal visivel de diferenca. Para o ultimo grupo, o direito esta integrado a politica e a cultura, e o caminho que conduz a um tratamento mais justo para as mulheres se situa em mudancas que lhes permitirao ocupar diferentes posicoes na sociedade, de forma que a diferenciacao se torne superflua (12).

      O inconveniente dessas abordagens e que o significado de diferenciacao tende a ser absorvido pelo de discriminacao, e o fulcro dos argumentos reside na ideia de que as mulheres sao tratadas mal dentro do direito por serem diferenciadas dos homens. Com frequencia, isso significa afirmar que os homens sao mantidos como o padrao com base no qual as mulheres devem ser julgadas (13). Por mais cansativo e absurdo que possa parecer, esse raciocinio apenas nos leva a imaginar que a solucao seja julgar as mulheres pelo padrao das mulheres. Talvez, entretanto, essa alternativa nao resolva muita coisa se as mulheres que definirem um padrao dessa natureza forem, em sua totalidade, brancas e de classe media. Se assim for, resta-nos um sistema juridico igualmente falho, em que o sexismo parecera ter sido erradicado, mas outras formas de opressao permanecerao. Contudo, essa falacia da substituicao nao e o problema central de uma perspectiva que evoca o conceito de sexismo em vez do de genero. O conceito de sexismo implica a possibilidade de anular a diferenca sexual como se ela fosse apenas um epifenomeno e nao estivesse enraizada na maneira pela qual negociamos a ordem social. Para falar de forma mais direta, a diferenca sexual--vista como construida ou nao (FUSS, 1989)--e parte de uma estrutura binaria de linguagem e sentido. Se erradicar a discriminacao depende de erradicar a diferenciacao, e necessario pensar uma cultura sem genero. Entao, o que parece ser uma solucao relativamente facil, como a incorporacao, no direito, de uma terminologia neutra no que se refere a genero, mascara um problema muito mais profundo. Alem disso, como muitas feministas ja argumentaram, nao e absoluta a ideia de que o resultado desejado do feminismo seja uma especie de...

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