Sobre "ser mulher e mae" em situacao de rua: invisibilidade na sociedade brasileira/On being a homeless 'woman and mother': invisibility in Brazilian society.

AutorMoreira, Tabita Aija Silva

Introdução

A forma como se estrutura a sociedade atual é definida pelo domínio do capital. Além disso, é regida pelos princípios do liberalismo econômico, ou seja, pelos ideais de liberdade, igualdade e propriedade, cujo pressuposto é a existência de um mercado no qual aparecem dois personagens na cena social: o trabalhador e o capitalista. Esse último é o detentor dos meios de produção, o proprietário; o primeiro, aquele que vende a sua única fonte de renda, sua força de trabalho (SAVIANI, 2013).

A sociedade capitalista, portanto, é composta por classes com interesses antagónicos. Nela é produzido um exército de reserva, que consiste na população que busca sua sobrevivência no subemprego ou em relações precarizadas de trabalho. A população em situação de rua ocupa os espaços ainda mais segregados no cenário social, pois dela são retirados os direitos de existir, cuja marca principal é a sua invisibilidade. São pessoas que, por não terem garantido o acesso a um trabalho que lhes proveja condições mínimas de dignidade, acabam vivendo da mendicância, ocupando os espaços públicos e, muitas vezes, sendo criminalizadas por não "caberem" no cinturão proposto pelo capitalismo.

Diante disso, as sociedades capitalistas têm enfrentado problemas sociais decorrentes de suas próprias contradições. "Sobram" pessoas num processo de inclusão perversa, pois este sistema as exclui dos bens de produção e de consumo para, em seguida, incluí-las através da escassez ou mesmo ausência total de recursos como princípio de sobrevivência (MARTINS, 1997). A população em situação de rua (Pop Rua/PSR) faz parte do cenário que compõe o fenómeno inerente à produção capitalista das cidades, cujo acesso também lhe é negado. Desse modo, não há espaço para estas pessoas nem mesmo nas ruas, pois estas passam por processos constantes de higienização, estigmatização e interdição (BRASIL, 2009). De acordo com a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR):

considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória (BRASIL, 2009, n. p.). É possível perceber que a população em situação de rua é caracterizada por sua diversidade para a PNPR. Assim, este artigo parte dos pressupostos da teoria social marxiana, segundo a qual o real só pode ser apreendido por meio da primazia da concreticidade. Neste sentido, as mulheres, segmento produtor e, ao mesmo tempo, explorado pelo ciclo capital-tra-balho, não são apenas trabalhadoras nas sociedades capitalistas, mas exercem um papel fundamental na reprodução humana como fonte de criação de valor e exploração. Essas sociedades se estabeleceram, em grande parte, devido ao trabalho não remunerado das mulheres como mães responsáveis pela reprodução biológica e social de trabalhadores assalariados para garantir a produtividade do sistema. O desenvolvimento da sociedade capitalista prescinde, então, da ascensão do patriarcado, em concomitância com o aprofundamento das relações sociais de raça, além do cerceamento dos direitos políticos, sexuais e reprodutivos das mulheres. É através da idealização da família burguesa, que a maternidade se constrói associada ao papel da mulher como mãe protetora e totalmente dedicada à família.

Faz-se necessário entender as relações patriarcais de gênero que perpassam a existência da mulher antes mesmo do modo de produção capitalista, mas que com ele se acirram e se aprofundam, associando-se às categorias sociais de raça e classe, uma vez que a construção social da PSR no Brasil tem relação direta com a escravização. Cabe destaque à apropriação do corpo, da vida e da força de trabalho das mulheres pelos homens. O operário só poderia ofertar, trocar e vender ao mercado a sua capacidade de trabalho e produção, haja vista que, segundo Guillaumin (2004, p. 33), "o corpo é reservatório da força de trabalho". No caso das mulheres, ocorre a exploração de sua força de trabalho por vezes sem remuneração, principalmente no trabalho reprodutivo e doméstico. Nesse caso, não é só a força de trabalho que é explorada, mas a própria "máquina", a mulher em si, por meio da apropriação física direta (relações de sexo, escravidão e servidão).

Destacamos as mulheres em situação de rua (MSR) por estarem expostas a diversas formas de violência e por travarem constante luta pela sobrevivência. Ao vivenciar a gestação, essas mulheres não encontram condições suficientes para o exercício da maternidade pela falta de políticas públicas que as amparem e protejam da violência. Há uma realidade nacional de casos de retiradas compulsórias de bebês, ainda na maternidade, de mães em situação de rua e/ou usuárias de drogas (CONANDA, 2017; MALHEIRO, 2018). Outrossim, estão expostas a casos como o que ocorreu em Mococa, interior de São Paulo, onde foi deferido judicialmente o procedimento de esterilização de uma mulher por ser classificada como "dependente química" e, assim, incapaz de ser mãe (1). Essas situações evidenciam um recorte de classe na autorização social e jurídica para o exercício da maternidade. Dito isso, faz-se relevante ouvir essas mulheres sobre a vivência da gravidez no contexto da vivência de rua e suas estratégias de enfrentamento aos desafios gestacionais e à violência.

Metodologia

A proposta da presente pesquisa é averiguar a vivência da gravidez por um casal homoafetivo de mulheres em situação de rua (MSR) no município de Natal (RN). Para a construção dos dados da presente pesquisa, utilizamos uma abordagem metodológica que compreendeu uma observação participante e entrevista em profundidade.

Neste sentido, elucidamos questões acerca da sociedade atual que afetam diretamente o empobrecimento das mulheres. Enfatizamos que esta pesquisa reconhece os problemas sociais e pretende proporcionar reflexão sobre eles (GROULX, 2010). Tendo como referencial o materialismo histórico-dialético, compreendemos o objeto pesquisado como parte de uma totalidade complexa, considerando que as contradições do sistema capitalista se colocam como empecilho para a efetiva garantia dos direitos do segmento populacional em questão. Este referencial introduz elementos de análise contextualizados, podendo descortinar a essência dos problemas sociais para além das aparências.

Ao observar o fenómeno da Pop Rua como expressão direta do Estado sobre estes sujeitos, é importante dar vazão a uma discussão dialética dentro do plano de análise. O Estado, como um aparelho central e exclusivo de poder (MACHADO, 1979) expressa visivelmente sua ação sobre a vida em sociedade. Com isso, percebemos a possibilidade de discutir os dados a partir de um ponto de vista que revela as expressões de saber e poder dentro da sociedade, acabando por proporcionar uma desfiliação dos sujeitos dentro do seu próprio meio social.

Este trabalho é parte de uma pesquisa maior sobre gravidez e maternidade de mulheres que estão em situação de rua no município de Natal (RN), cuja ideia central é problematizar as possibilidades de ser família em situação de rua diante de um cenário de criminalização e judicialização da pobreza. Assim, através da observação participante em reuniões e eventos organizados pelo Movimento Nacional População de Rua do Rio Grande do Norte (MNPR/RN) e por organizações parceiras conhecemos os sujeitos de pesquisa, Mamusca e P1 (2). O casal foi convidado a participar da pesquisa, na qual foi realizada entrevista em profundidade-individual e em conjunto -, gravada com a autorização das mesmas e com anuência do Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Após a transcrição da entrevista, foi realizada a análise temática dos resultados de acordo com o proposto por Braun e Clarke (2006).

Resultados e discussão (3)

"Bom...Mulheres da rua, sim!"

Conhecemos Mamusca em julho de 2018, durante um evento mobilizador proposto pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Norte (CRP 17/RN) em resposta a denúncias sobre retiradas compulsórias de bebês das suas mães ainda na maternidade. O tema do encontro foi O ECA e os impactos da integralidade na proteção de famílias em situação de rua por ser, também, alusivo aos 28 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Participaram desta atividade representantes do Sistema de Garantia de Direitos das Crianças e Adolescentes (SGDCA) secretarias municipais de assistência social e...

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