Não se pode descontar vales transporte e alimentação em dispensa sem justa causa

“Auto da Compadecida”, do saudoso Ariano Suassuna, narra as desventuras de Chicó e seu amigo João Grilo, na cidade de Taperoá, Paraíba. Entre uma confusão e outra, Chicó contava seus fantasiosos “causos”, que iam desde a caçada de pacas que deixavam pegadas na água até cavalgada em cavalo bento, passando por um papagaio que, por frequentar o seminário, benzia gente. Porém, sempre que questionavam seus “causos”, Chicó respondia impassível com seu bordão: “não sei... só sei que foi assim...”.

Tal qual a Taperoá da década de 50 retratada por Suassuna, vivemos tempos difíceis no Brasil de hoje, tanto para empregadores e empregados. São esses últimos, contudo, que mais sofrem: o primeiro trimestre do ano registrou uma taxa de desemprego de 13,7%, o que equivale a mais de 14 milhões de trabalhadores sem ocupação[1].

Nesse cenário nada amistoso, com estresse do fluxo de caixa dos empregadores, as demissões sem justa causa engrossam as estatísticas de desemprego e, por conseguinte, aumentam os tipos de rubricas descontadas do empregado no momento da rescisão do contrato de trabalho. Duas dessas rubricas que eram descontadas de forma tímida e que passaram a ser descontadas com mais frequência referem-se às antecipações pelo empregador dos vales transporte e refeição (este último vinculado ao Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT), previstos principal e respectivamente nas Leis 7.418/1987 e 6.321/1976, além de negociações coletivas.

O desconto indiscriminado desses importantes benefícios sociais deveria causar alguma inquietação. Mas essas rubricas não raras vezes passaram e ainda passam desapercebidas pelos empregados e até mesmo pelos sindicatos e magistrados, provavelmente em razão do baixo valor envolvido, se comparadas com as demais verbas rescisórias comumente pleiteadas.

Some-se a esse desinteresse o fato de os precedentes reconhecerem que tal prática é sempre adequada, com amparo legal no artigo 462, caput e parágrafo 1º, da CLT. Os tribunais do trabalho do país[2] simplesmente consideram que os vale transporte e refeição seriam meros adiantamentos ao empregado e que por isso, uma vez comprovados documentalmente, poderiam ser descontados pelo empregador no momento da rescisão, sem se aprofundar em questões conexas importantes, como o tipo de desligamento (com ou sem justa causa), cumprimento (ou não) do aviso prévio, valores de quota-parte ou proporcionalidade.

Ao analisar os poucos precedentes que serviram de alicerce para a formação do posicionamento, percebe-se que em momento algum foi perquirida a natureza jurídica dos adiantamentos previstos no artigo 462 da CLT a ponto de se conseguir identificar quais seriam as verbas passíveis de desconto e quando esse desconto seria lícito.

E o efeito multiplicador decorrente da reprodução exponencial e irrefletida de precedentes fez com que a jurisprudência assim se consolidasse. Quem ousar ir além da mera ementa dos precedentes e ler atentamente os votos proferidos não encontrará fundamentos consistentes que justifiquem o verdadeiro porquê desse entendimento.

A base de copiar e colar, o bordão de Chicó fez-se ecoar nos tribunais: “não sei... só sei que foi assim”

Quando discutida nos tribunais, a sistemática de implementação desses benefícios sociais à luz da Leis 7.418/1987 e 6.321/1976 acabou sendo indevidamente combinada com a previsão da sistemática de pagamento do salário previsto na CLT. Ocorre que os termos adiantamento e desconto previstos nesses dispositivos são homônimos.

Essa simplificação exagerada acabou gestando o entendimento de que os valores adiantados pelo empregador a título de vales transporte e refeição poderiam ser sempre descontados do empregado, inclusive no momento da rescisão imotivada e imediata do contrato de trabalho. Adiantamento e desconto foram utilizados de forma quase leviana, sem apreço pela sua real finalidade. Criou-se então uma sistemática defeituosa e, principalmente, injusta. Esse é o sofisma que prevalece e que tem direcionado nossos julgadores.

É preciso despertar o senso crítico e de fato analisar a natureza jurídica desses adiantamentos, de forma a não subverter sua ratio. Também é preciso atentar à ressalva quanto ao afastamento imediato, pois quando há o cumprimento do aviso prévio, o adiantamento dos benefícios fiscais provavelmente será utilizado pelo empregado até o momento do afastamento efetivo posterior, fazendo com que o desconto além da quota-parte não seja necessário. Isto feito, propõe-se uma releitura sobre a (i)legalidade dos descontos dos vales transporte e refeição nos casos de rescisão imotivada do contrato de trabalho com a dispensa do aviso prévio.

Pois bem. Topograficamente, o artigo 462 encontra-se no Capítulo II da CLT (remuneração) e por isso deve ser sempre analisado à luz do princípio da incolumidade ou intangibilidade salarial. Esse princípio reconhece a condição de hipossuficiente do empregado e o protege contra as investidas e abusos do empregador na relação de trabalho, ungindo o salário e elevando-o à condição de sacrossanto. Somente em situações excepcionalíssimas é permitida a dedução de valores salariais no âmbito do Direito do Trabalho.

O adiantamento previsto no artigo 462, caput, da CLT na acepção jurídica (e específica do Direito do Trabalho) deve ser considerado como a concessão pelo empregador de valores remuneratórios fora do momento próprio, de forma antecipada, ocasião em que sua...

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