Natal amarelo

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NATAL AMARELO
Desenho: Rita Cipolatti.
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O COLECIONADOR DE FRONTEIRAS – vivências e histórias (santas e bárbaras) de um diplomata mineiro matuto
NATAL AMARELO: PARTE I
Fanfarronice! Palhaçada! Isso mesmo, tudo no mundo
não passa de uma grande burla, diz Falstaff. Maria José Al-
ves deixa-se levar pela reflexão, recostada na cama do quarto
no Hotel Quadrado, em Santa Bárbara, em Minas Gerais, uma
das muitas cidades do chamado Quadrilátero Ferrífero, e cuja
prosperidade relativa se deve à mineração. Outrora de ouro,
agora de ferro. Pensará talvez em outros termos, menos sofis-
ticados. Falstaff ainda não a alcança. Mas, é o que lhe vem à
cabeça, e como boa mineira, matuta: palhaçada, ou ao menos
uma brincadeira de mau gosto. Vai mesmo herdar uma mina
de ouro? Ainda convalesce da febre amarela que a acometeu,
felizmente de forma benigna. Uma loucura, sair do hospital em
São Paulo, logo antes de ter alta. Fugiram, isso é o que é. Ela,
logo com o ex-namorado Vicente. Para ele, tudo isso é verdade,
“temos que sair agora do hospital, ir ao cartório nessa cidade,
Santa Bárbara, para tentar fazer o registro a tempo”. Registrar
o ato notarial de “interesse”. “Você é herdeira”, lembrou, “o
cartório deu prazo, que vence em dias, para você se apresentar
e garantir a posse e exploração da mina, chamada de Itajuru”.
Havia guardado na bolsa a notificação do cartório, mês passado,
recebida após o falecimento do pai, quando foi ver a mãe viúva.
À época, leu o documento e não deu importância, não pode
ser coisa séria. Além do mais, na condição enferma, tratar de
papéis, com certeza contas, cobranças?
Sim, estivera enferma. Contraíra a doença durante a estada
na casa dos pais em Aymorés, região no vale do Rio Doce infes-
tada pelo mosquito Aedes, em seguida levada às pressas para São
Paulo, depois de passar pelo posto de saúde local, onde a longa
fila para vacinação compete em desespero com outra, homens,
mulheres e crianças com sintomas da febre, em busca de aten-
ção médica. Vicente, ao visitá-la no hospital, dá por acaso com o
documento no chão, caído de sua bolsa. Ao lê-lo, vê que o juiz
da Vara Cível da Comarca de Santa Bárbara estabelece para dali
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a poucos dias, fim do mês e do ano, o prazo, final e irrevogável,
para manifestar judicialmente o tal “interesse” na mina.
Havida há bem mais de século e meio como soterrada e
desativada, a mina foi literalmente aflorada pelos maciços mo-
vimentos de terra e lama gerados pelo recente e trágico rompi-
mento das barragens de dejetos de minério na região de Bento
Rodrigues, divisa dos distritos de Mariana e de Santa Bárbara.
Requisitado o título de concessão sobre a mina, por interesse
de uma empresa mineradora, a Sociedade Nacional de Lavras e
Mineração Ltda. (SONALAM), concorrente com as mesmíssimas
empresas mineradoras responsáveis por essa grande tragédia: a
SAMARCO, subsidiária da companhia VALE, e a anglo-australia-
na BHP, foi apenas encontrada, no cartório de Santa Bárbara, a
relação pré-escritural da concessão original, por título de sesma-
ria, ainda nos tempos coloniais, por D. João VI, a um certo João
Teixeira Alves, qualificado à margem do documento como rico
proprietário português instalado na região. Examinada a linha-
gem, e sendo parca a descendência de João Teixeira Alves Filho,
verificou-se tratar de antepassado de Maria José.
Ao seu lado, na cama, Vicente relê com vagar o compro-
vante emitido pelo cartório, relativo à reclamação, em tempo
hábil, da propriedade e posse da lavra recém-descoberta de Ita-
juru, pela herdeira legítima, Maria José Alves. Não que fosse im-
prescindível, pensa, mas Maria José afinal teve visão, quando se
casou com José Taboão, ao manter o nome de solteira. Fica mais
fácil o reconhecimento judicial da pretensão, agora direta, com
o falecimento do pai, Luiz Figueiredo Alves, a quem havia sido
originalmente endereçada a notificação cartorial.
Parece, segue matutando Maria José, nunca em vida o pai
se deu conta dessa herança, tampouco houve jeito, pois a mina
esteve soterrada e esquecida por quase dois séculos. Triste reco-
nhecer que a mina aflorou, depois desse tempo todo soterrada,
graças – se é pode dizer assim, Deus me perdoe – à grande tra-
gédia causada pelo rompimento dessas barragens; mas, disseram
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